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Atividade da Natureza

on quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Em contraste com as visões modernas de natureza, busco em meu trabalho formular um modelo interpretativo gadameriano em que aflore uma estrutura especulativa linguística, assim permitindo que a Natureza venha-à-fala. Para Gadamer (1995), tal processo lembra a dialética grega. Nela, o conhecimento de alguma coisa não era resultado de uma atividade metódica da consciência, mas, em vez disso, algo que a própria coisa fez e que o pensamento sofre. Apesar da tentativa de Platão de sair do reino da linguagem em sua formulação da Teoria das Formas, no pensamento grego a coisa mantinha certa dignidade da coisa": "Podemos ver que tal atividade da coisa, o vir-à-falado significado, aponta para uma estrutura universal, a saber, a natureza básica de tudo para o qual é dirigida a compreensão. Ser que pode ser compreendido é linguagem" (p. 474). A hermenêutica projeta assim suas capacidades de volta para a realização ontológica do que é interpretado. Pode então ser possível falar em uma linguagem da Natureza, uma linguagem da Arte etc. A Natureza torna-se desse modo inteligível. Mais importante: essa visão contrasta agudamente com os resultados da ciência moderna. Como observa Gadamer.

(...) assim como a ciência moderna não vê a natureza como um todo inteligível, mas como um processo que não tem nada a ver com os seres humanos, um processo em que a pesquisa científica lança uma luz limitada mas confiável, viabilizando o controle, assim a mente humana, buscando proteção e certeza, coloca a compreensão científica contra a "incompreensibilidade da vida", este semblante amedrontador (Idem, p. 239)

Na hermenêutica é perfeitamente legítimo falar em um "livro sobre a Natureza", uma vez que tudo o que pode ser compreendido é de fato linguagem (Gadamer 1995). Isso não é dizer que um segundo ser emerge quando a Natureza vem-à-fala, mas sim propor que o que se apresenta como coisa pertence a seu próprio ser. "Seu próprio ser físico existe unicamente para desaparecer no que é dito. Da mesma forma, o que entra na linguagem não é algo anterior à linguagem; em vez disso a palavra fornece sua própria determinação" (idem, p. 475).

Boa parte disso pode ser dita quanto à interpretação da obra de arte. O ser de uma obra de arte não é um "ser em si mesmo" que difere de sua reprodução ou da contingência de sua aparência. O significado de um evento, texto ou mesmo da Natureza não é um objeto que exista por si só, pois há sempre um mediador, um intérprete entre o passado e o presente. A função da hermenêutica consiste, portanto, na tematização dessa tensão. Nossa relação com o mundo é, por sua própria natureza, verbal do ponto de vista hermenêutico da linguagem. O "ser em si mesmo" é meramente abstração. A interpretação da Natureza pode realmente ser mais bem compreendida com referência a algumas analogias relativas à experiência interpretativa da arte e à experiência interpretativa arte e à experiência interpretativa da história. Os procedimentos objetificadores das ciências naturais, buscando conhecer sem reconhecer a dimensão linguística de nossa experiência de conhecimento, buscam simplesmente a certeza e uma crescente dominação do ser. E nenhuma outra forma do conhecer é válida. Entretanto, como já foi observado, Gadamer argumentou que a compreensão da obra de arte requer uma postura diferente, em que à coisa é conferida certa dignidade - "a coisa mantém sua dignidade". Na Parte I de Verdade e método, Gadamer (1995) mostra que uma compreensão genuína da obra de arte ocorre através da liberação da arte e da história do objetivismo. Os conceitos de arte e história são formas de compreender "que emergem do modo universal dos seres hermenêuticos como formas de experiência hermenêutica" (p. 476). Essa experiência hermenêutica de uma compreensão da arte ocorre previamente à atividade refletiva.

Como observa Flickinger (Apud Almeida, Flickinger e Rohden 2001), "trata-se aqui, sempre, de algo ou de alguém que se encontra à nossa frente e, como tal, dirige-se a nós e inquieta-nos, devido única e exclusivamente ao fato de ser outro que nós mesmos" (p. 28). Proponho que deveríamos buscar interpretar, compreender a Natureza da mesma forma que compreendemos uma obra de arte. "A obra de arte é um convite insistente a que nos deixemos sugar para dentro do espaço de um mundo novo alheio" (idem, p. 33). Nesse espaço ocorre o desfazer dos hábitos que anteriormente determinaram nossa postura antiecológica diante da Natureza.

O conceito de jogo é particularmente importante para melhor compreendermos a experiência hermenêutica, pois seu modo de ser é o da auto-apresentação. O ser estético também depende da própria noção de apresentação. A Natureza, por sua vez, não será ouvida a não ser que nos comprometamos com ela, a não ser que tenhamos a vontade de ouvi-la. Isso não quer dizer que a Natureza careça de autonomia, mas que a Natureza, assim como o ser estético, adquire seu ser exatamente no ato da auto-apresentação.
Tornada como chave decifratória à experiência hermenêutica, a ontologia da obra de arte anuncia os elementos fundadores do compreender. São eles a solicitação do estranho, uma disposição de entrega ao aberto e à linguagem, esse horizonte intransponível de nosso encontro com o mundo. (Apud Almeida, Flickinger e Rohden 2000, p. 44).

A questão é, pois, que, a não ser que o intérprete seja interpelado pela coisa, sendo esta unia obra de arte ou a Natureza, ele jamais teria a permissão para buscar compreendê-la. É importante enfatizar, então, que o que buscamos compreender não se mantém estático. Essa compreensão será possível somente se envolver respeito pela dignidade, pela alteridade daquilo que queremos compreender. Aquilo com o qual estamos familiarizados não nos estimula a investigar. E é por meio da investigação que o sujeito emerge além de seus próprios limites. A compreensão só será possível se envolver respeito pela alteridade do Outro que buscamos conhecer. O processo de questionamento necessitará de respeito pelo Outro em sua diversidade. Esse processo só pode ocorrer quando nos comprometemos com o diálogo com a Natureza como urna verdadeira troca de experiências.
Gadamer (1995) explica esse respeito pela outridade com referência ao jogo. O jogo para ele é um modelo estrutural de diálogo. No jogo os parceiros se testam. Na verdade. Gadamer sugere que, para os que estão verdadeiramente envolvidos no jogo, a experiência é de "auto-esquecimento". Eles perdem o rastro de seu próprio ser, por estarem concentrados no jogo. Para Gadamer, isso serve corno perfeita analogia do ato da compreensão.

Os gregos definiam como Kalon (coisas belas) aquelas cujo valor era evidente e cujo propósito era inquestionável. "Elas eram desejáveis por si sós (di'haouto haireton) e não, como as coisas úteis, por algum outro motivo" (Gadamer 1995, p. 477). Essas coisas tinham um valor intrínseco. Em contraste, os modernos argumentam que a mente humana artística define as coisas como úteis ou belas. Esse modo de compreensão mantém certa analogia com a explicação da Natureza para a ciência moderna. A atitude fundamental da ciência é a dominação do ser.

A beleza da Natureza perdeu sua prioridade a ponto de ser concebida como reflexão da mente. (..) A ciência admite a beleza da natureza, da arte e o prazer abnegado que estas conferem - mas apenas em suas próprias fronteiras, as fronteiras da dominação da natureza. Ao descrevermos o inverso da relação entre a beleza da natureza e da arte, discutimos a mudança através da qual a beleza da natureza perdeu sua prioridade a ponto de ser concebida como reflexão da mente. (Gadamer 1995, p. 480)
Gadamer argumenta que a Natureza (o não-eu) perde a dignidade que os gregos lhe atribuíram no mundo das coisas belas, o Cosmo, e torna-se um espelho do conceito de arte. É necessário compreender algumas implicações do conceito grego de beleza para a hermenêutica. Platão explicou em Filebo que a beleza não é simples simetria, salientando que sempre está relacionada à noção de "reluzir". A beleza tem o modo de ser da luz. Gadamer propôs que o reluzir de algo surge quando aparece aquilo em que a luz reflete. A beleza, portanto, tem o modo de ser da luz, do reluzir. E a luz que faz isso acontecer é a luz da palavra. A metafísica da luz serve, então, para mostrar precisamente que tipo de relação guia a pesquisa hermenêutica. Ainda assim, isso serviria para restaurar o platonismo? A resposta é não, pois é perfeitamente possível separar a estrutura da luz de uma metafísica neoplatônica e, de fato, da metafísica crista de onde se origina. Já na interpretação do Gênesis de Agostinho, encontramos os elementos da compreensão de uma interpretação especulativa da linguagem em que a multiplicidade do que ocorre no pensamento deriva unicamente da palavra, Além disso, Gadamer acredita que a filosofia grega pode ser particularmente produtiva para a hermenêutica, pois propõe que o "ser é auto-apresentação e que toda compreensão é um evento" (1995, p. 484). Duas outras questões podem ser colocadas para uma compreensão da metafísica da beleza: o esplendor do belo e a clareza do inteligível.
Tais considerações do modo de ser do esplendor do belo levam-nos ao entendimento de que o modo de ser do esplendor do belo tem o caráter de um evento. Até esta altura torna-se possível mais uma vez justificar a primazia da atividade da coisa (Natureza) na experiência hermenêutica. Mais importante, essa postura contrasta radicalmente com uma consciência metodológica moderna que busca controlar a coisa.

Na experiência hermenêutica, "a coisa mesma compele-nos a falar sobre o evento de uma atividade da coisa" (Gadamer 1995, p. 485). A conexão entre a compreensão e o belo, desse modo, bem fácil de apreender. O processo pode ser explicado dizendo-se que o ato de compreender é semelhante ao de acender a luz, processo em que tudo que está sendo analisado é de súbito aumentado. A forma de o logos grego expressar a Fundamentação da experiência é inevitavelmente fragmentada. Todavia, foi precisamente de uma tradição platônica que “foi desenvolvido o vocabulário conceitual exigido para o pensamento sobre a finitude da vida humana” (idem, pp. 486-487). A ideia platônica de beleza e a universalidade da hermenêutica estão intimamente ligadas. O modo de ser do belo é característica do ser em geral. Para Gadamer (idem, p. 487), "se partirmos da visão ontológica básica de que ser é linguagem i.e,, auto-apresentação - como nos revela a experiência hermenêutica do ser, então segue que o caráter do evento do belo é a estrutura-evento de toda a compreensão". Gadamer apresenta, desse modo, um Platão livre do elo com a Doutrina metafísica da Forma, um Platão para quem o elemento essencial do belo, aletheia, significava que o belo se revelasse em seu ser, que ele apresentasse a si mesmo.

A auto-apresentação é o verdadeiro ser da obra de arte, bem como da Natureza. É importante reafirmar que se trata de auto-apresentação da Natureza e não de representação, um conceito moderno e objetificante. O conceito de jogo é essencial ao ato de compreensão. A compreensão é, desse modo, não uma atividade técnica, mas uma experiência genuína em que nos comprometemos com algo, como a Natureza, que, por sua vez, se apresenta como verdade. Esse compromisso ocorre na interpretação verbal, e as palavras que trazem algo para a linguagem são elas mesmas um evento especulativo. Além disso, essa característica da compreensão reafirma a "dignidade da coisa". O significado da coisa é verdadeiramente auto-expresso - não pertence ao falante nem ao que é falado. "Tudo que entra na linguagem, e não apenas o poético, tem sobre si algo desta qualidade da auto-atestação" (Gadamer 1995, p. 489).

Trecho do meu livro "Em Busca da Dimensão Ética da Educação Ambiental"
Mauro Grün - Doutor em Ética e Educação Ambiental pela University of Western Australia