Em contraste
com as visões modernas de natureza, busco em meu trabalho formular um modelo
interpretativo gadameriano em que aflore uma estrutura especulativa
linguística, assim permitindo que a Natureza venha-à-fala. Para Gadamer (1995),
tal processo lembra a dialética grega. Nela, o conhecimento de alguma coisa não
era resultado de uma atividade metódica da consciência, mas, em vez disso, algo
que a própria coisa fez e que o pensamento sofre. Apesar da tentativa de Platão
de sair do reino da linguagem em sua formulação da Teoria das Formas, no
pensamento grego a coisa mantinha certa dignidade da coisa": "Podemos
ver que tal atividade da coisa, o vir-à-falado significado, aponta para uma
estrutura universal, a saber, a natureza básica de tudo para o qual é dirigida
a compreensão. Ser que pode ser compreendido é linguagem" (p. 474). A
hermenêutica projeta assim suas capacidades de volta para a realização
ontológica do que é interpretado. Pode então ser possível falar em uma
linguagem da Natureza, uma linguagem da Arte etc. A Natureza torna-se desse
modo inteligível. Mais importante: essa visão contrasta agudamente com os
resultados da ciência moderna. Como observa Gadamer.
(...) assim
como a ciência moderna não vê a natureza como um todo inteligível, mas como um
processo que não tem nada a ver com os seres humanos, um processo em que a
pesquisa científica lança uma luz limitada mas confiável, viabilizando o
controle, assim a mente humana, buscando proteção e certeza, coloca a
compreensão científica contra a "incompreensibilidade da vida", este
semblante amedrontador (Idem, p. 239)
Na
hermenêutica é perfeitamente legítimo falar em um "livro sobre a
Natureza", uma vez que tudo o que pode ser compreendido é de fato
linguagem (Gadamer 1995). Isso não é dizer que um segundo ser emerge quando a
Natureza vem-à-fala, mas sim propor que o que se apresenta como coisa pertence
a seu próprio ser. "Seu próprio ser físico existe unicamente para
desaparecer no que é dito. Da mesma forma, o que entra na linguagem não é algo
anterior à linguagem; em vez disso a palavra fornece sua própria
determinação" (idem, p. 475).
Boa parte
disso pode ser dita quanto à interpretação da obra de arte. O ser de uma obra
de arte não é um "ser em si mesmo" que difere de sua reprodução ou da
contingência de sua aparência. O significado de um evento, texto ou mesmo da
Natureza não é um objeto que exista por si só, pois há sempre um mediador, um
intérprete entre o passado e o presente. A função da hermenêutica consiste,
portanto, na tematização dessa tensão. Nossa relação com o mundo é, por sua
própria natureza, verbal do ponto de vista hermenêutico da linguagem. O
"ser em si mesmo" é meramente abstração. A interpretação da Natureza
pode realmente ser mais bem compreendida com referência a algumas analogias
relativas à experiência interpretativa da arte e à experiência interpretativa
arte e à experiência interpretativa da história. Os procedimentos
objetificadores das ciências naturais, buscando conhecer sem reconhecer a
dimensão linguística de nossa experiência de conhecimento, buscam simplesmente
a certeza e uma crescente dominação do ser. E nenhuma outra forma do conhecer é
válida. Entretanto, como já foi observado, Gadamer argumentou que a compreensão
da obra de arte requer uma postura diferente, em que à coisa é conferida certa
dignidade - "a coisa mantém sua dignidade". Na Parte I de Verdade e
método, Gadamer (1995) mostra que uma compreensão genuína da obra de arte
ocorre através da liberação da arte e da história do objetivismo. Os conceitos
de arte e história são formas de compreender "que emergem do modo
universal dos seres hermenêuticos como formas de experiência hermenêutica"
(p. 476). Essa experiência hermenêutica de uma compreensão da arte ocorre
previamente à atividade refletiva.
Como observa
Flickinger (Apud Almeida, Flickinger e Rohden 2001), "trata-se aqui,
sempre, de algo ou de alguém que se encontra à nossa frente e, como tal,
dirige-se a nós e inquieta-nos, devido única e exclusivamente ao fato de ser
outro que nós mesmos" (p. 28). Proponho que deveríamos buscar interpretar,
compreender a Natureza da mesma forma que compreendemos uma obra de arte.
"A obra de arte é um convite insistente a que nos deixemos sugar para
dentro do espaço de um mundo novo alheio" (idem, p. 33). Nesse espaço ocorre
o desfazer dos hábitos que anteriormente determinaram nossa postura
antiecológica diante da Natureza.
O conceito de
jogo é particularmente importante para melhor compreendermos a experiência
hermenêutica, pois seu modo de ser é o da auto-apresentação. O ser estético
também depende da própria noção de apresentação. A Natureza, por sua vez, não
será ouvida a não ser que nos comprometamos com ela, a não ser que tenhamos a
vontade de ouvi-la. Isso não quer dizer que a Natureza careça de autonomia, mas
que a Natureza, assim como o ser estético, adquire seu ser exatamente no ato da
auto-apresentação.
Tornada como chave decifratória à
experiência hermenêutica, a ontologia da obra de arte anuncia os elementos
fundadores do compreender. São eles a solicitação do estranho, uma disposição
de entrega ao aberto e à linguagem, esse horizonte intransponível de nosso
encontro com o mundo. (Apud Almeida, Flickinger e Rohden 2000, p. 44).
A questão é,
pois, que, a não ser que o intérprete seja interpelado pela coisa, sendo esta
unia obra de arte ou a Natureza, ele jamais teria a permissão para buscar
compreendê-la. É importante enfatizar, então, que o que buscamos compreender
não se mantém estático. Essa compreensão será possível somente se envolver
respeito pela dignidade, pela alteridade daquilo que queremos compreender.
Aquilo com o qual estamos familiarizados não nos estimula a investigar. E é por
meio da investigação que o sujeito emerge além de seus próprios limites. A
compreensão só será possível se envolver respeito pela alteridade do Outro que
buscamos conhecer. O processo de questionamento necessitará de respeito pelo
Outro em sua diversidade. Esse processo só pode ocorrer quando nos
comprometemos com o diálogo com a Natureza como urna verdadeira troca de
experiências.
Gadamer (1995) explica esse
respeito pela outridade com referência ao jogo. O jogo para ele é um modelo
estrutural de diálogo. No jogo os parceiros se testam. Na verdade. Gadamer
sugere que, para os que estão verdadeiramente envolvidos no jogo, a experiência
é de "auto-esquecimento". Eles perdem o rastro de seu próprio ser,
por estarem concentrados no jogo. Para Gadamer, isso serve corno perfeita
analogia do ato da compreensão.
Os gregos
definiam como Kalon (coisas belas) aquelas cujo valor era evidente e cujo
propósito era inquestionável. "Elas eram desejáveis por si sós (di'haouto
haireton) e não, como as coisas úteis, por algum outro motivo" (Gadamer
1995, p. 477). Essas coisas tinham um valor intrínseco. Em contraste, os
modernos argumentam que a mente humana artística define as coisas como úteis ou
belas. Esse modo de compreensão mantém certa analogia com a explicação da
Natureza para a ciência moderna. A atitude fundamental da ciência é a dominação
do ser.
A beleza da
Natureza perdeu sua prioridade a ponto de ser concebida como reflexão da mente.
(..) A ciência admite a beleza da natureza, da arte e o prazer abnegado que
estas conferem - mas apenas em suas próprias fronteiras, as fronteiras da
dominação da natureza. Ao descrevermos o inverso da relação entre a beleza da
natureza e da arte, discutimos a mudança através da qual a beleza da natureza
perdeu sua prioridade a ponto de ser concebida como reflexão da mente. (Gadamer
1995, p. 480)
Gadamer argumenta que a Natureza
(o não-eu) perde a dignidade que os gregos lhe atribuíram no mundo das coisas
belas, o Cosmo, e torna-se um espelho do conceito de arte. É necessário
compreender algumas implicações do conceito grego de beleza para a
hermenêutica. Platão explicou em Filebo que a beleza não é simples simetria,
salientando que sempre está relacionada à noção de "reluzir". A
beleza tem o modo de ser da luz. Gadamer propôs que o reluzir de algo surge
quando aparece aquilo em que a luz reflete. A beleza, portanto, tem o modo de
ser da luz, do reluzir. E a luz que faz isso acontecer é a luz da palavra. A
metafísica da luz serve, então, para mostrar precisamente que tipo de relação
guia a pesquisa hermenêutica. Ainda assim, isso serviria para restaurar o
platonismo? A resposta é não, pois é perfeitamente possível separar a estrutura
da luz de uma metafísica neoplatônica e, de fato, da metafísica crista de onde
se origina. Já na interpretação do Gênesis de Agostinho, encontramos os
elementos da compreensão de uma interpretação especulativa da linguagem em que
a multiplicidade do que ocorre no pensamento deriva unicamente da palavra, Além
disso, Gadamer acredita que a filosofia grega pode ser particularmente
produtiva para a hermenêutica, pois propõe que o "ser é auto-apresentação
e que toda compreensão é um evento" (1995, p. 484). Duas outras questões
podem ser colocadas para uma compreensão da metafísica da beleza: o esplendor
do belo e a clareza do inteligível.
Tais considerações do modo de ser
do esplendor do belo levam-nos ao entendimento de que o modo de ser do
esplendor do belo tem o caráter de um evento. Até esta altura torna-se possível
mais uma vez justificar a primazia da atividade da coisa (Natureza) na
experiência hermenêutica. Mais importante, essa postura contrasta radicalmente
com uma consciência metodológica moderna que busca controlar a coisa.
Na experiência
hermenêutica, "a coisa mesma compele-nos a falar sobre o evento de uma
atividade da coisa" (Gadamer 1995, p. 485). A conexão entre a compreensão
e o belo, desse modo, bem fácil de apreender. O processo pode ser explicado
dizendo-se que o ato de compreender é semelhante ao de acender a luz, processo
em que tudo que está sendo analisado é de súbito aumentado. A forma de o logos
grego expressar a Fundamentação da experiência é inevitavelmente fragmentada.
Todavia, foi precisamente de uma tradição platônica que “foi desenvolvido o
vocabulário conceitual exigido para o pensamento sobre a finitude da vida
humana” (idem, pp. 486-487). A ideia platônica de beleza e a universalidade da
hermenêutica estão intimamente ligadas. O modo de ser do belo é característica
do ser em geral. Para Gadamer (idem, p. 487), "se partirmos da visão
ontológica básica de que ser é linguagem i.e,, auto-apresentação - como nos
revela a experiência hermenêutica do ser, então segue que o caráter do evento
do belo é a estrutura-evento de toda a compreensão". Gadamer apresenta,
desse modo, um Platão livre do elo com a Doutrina metafísica da Forma, um
Platão para quem o elemento essencial do belo, aletheia, significava que o belo
se revelasse em seu ser, que ele apresentasse a si mesmo.
A
auto-apresentação é o verdadeiro ser da obra de arte, bem como da Natureza. É
importante reafirmar que se trata de auto-apresentação da Natureza e não de
representação, um conceito moderno e objetificante. O conceito de jogo é
essencial ao ato de compreensão. A compreensão é, desse modo, não uma atividade
técnica, mas uma experiência genuína em que nos comprometemos com algo, como a
Natureza, que, por sua vez, se apresenta como verdade. Esse compromisso ocorre
na interpretação verbal, e as palavras que trazem algo para a linguagem são
elas mesmas um evento especulativo. Além disso, essa característica da
compreensão reafirma a "dignidade da coisa". O significado da coisa é
verdadeiramente auto-expresso - não pertence ao falante nem ao que é falado.
"Tudo que entra na linguagem, e não apenas o poético, tem sobre si algo
desta qualidade da auto-atestação" (Gadamer 1995, p. 489).
Trecho do meu
livro "Em Busca da Dimensão Ética da Educação Ambiental"
Mauro Grün -
Doutor em Ética e Educação Ambiental pela University of Western Australia