on segunda-feira, 19 de janeiro de 2015
Natureza e Gênero
Mauro Grün

A natureza tem gênero? A nossa relação com a natureza passa por questões de gênero? Sim, responde o filósofo Mauro Grün.

A seguir algumas considerações sobre questões de gênero em nossa relação com a natureza:


              Em Francis Bacon encontramos um discurso que era abertamente contra as mulheres, ou que pelo menos as deixava em uma posição subserviente. "Bacon desenvolveu o poder de uma linguagem como instrumento político, reduzindo a natureza fêmea a um recurso para a produção econômica" (Merchant 1989, p. 165). Aliás, a comparação entre mulheres e Natureza como algo que deveria ser dominado é um tema frequente nos escritos de Bacon. A descrição da Natureza como se fosse uma bruxa na Inquisição a ser torturada para que nos contasse seus mais íntimos segredos é uma constante que permeia toda a obra do filósofo. Ele transformou a noção de uma Natureza-mãe, útero da vida, em uma fonte de segredos a serem extraídos pelo poder econômico. Podemos dizer que a filosofia de Francis Bacon não se constituía em um pensamento sofisticado se comparado ao que outros filósofos produziam no mesmo período, mas o fato crucial é que Bacon era uma pessoa muito importante na época, além de membro ilustre da Royal Society - a nata do pensamento científico inglês.

A busca pela objetividade representa uma mudança marcante de um cosmo organicista feminino para um mecanicista masculino. Merchant (1989) denomina isso de "Morte da Natureza". Vários escritores apontaram desde então a tendência masculinista no período entre 1550 e 1650. Bordo (1987) chega até a denominar o período de "século ginecófobo" e assinala que Brian Easlea, Barbara Ehrencheich, Deidre English e Adrienne Rich estão entre os que endossam essa visão do século XVII como central para uma mudança no equilíbrio entre os elementos masculinos e femininos da sociedade. De modo semelhante, Fox Keller (1985) desafiou a nuança masculina da noção de modernidade, enquanto Sandra Harding (1984) definiu a ciência moderna como a "epítome da masculinização do pensamento". Nas palavras de Bordo (1987, p. 108):

(...) um novo mundo é reconstruído, um mundo em que toda a geratividade e criatividade dirigem-se ao bem, o pai espiritual, em vez da "carne" feminina do mundo. Com o mesmo golpe de mestre - a oposição mútua do espiritual e do corpóreo — a terra anteriormente feminina torna-se matéria inerte e a objetividade da ciência é garantida.

Era Gadamer de fato tão ingênuo a ponto de permanecer desatento ao fato de certas perspectivas de uma tradição terem funções ideológicas que frequentemente são intrínsecas à manutenção do status quo? É necessária aqui mais discussão. Gadamer não endossa a noção de preconceito como tal. Ele simplesmente argumenta que nossa compreensão produz um número de preconceitos, asserção esta que se demonstra de diferentes modos. Só é preciso considerar um exemplo do próprio Habermas para explicar melhor essa questão: a posição das mulheres nas sociedades contemporâneas. Segundo Habermas, a hermenêutica filosófica de Gadamer não permite o desenvolvimento de uma postura crítica em relação ao papel e ao lugar das mulheres nas sociedades contemporâneas. Gadamer é conservador. A hermenêutica filosófica contribui para o continuísmo da iniquidade entre os sexos, uma vez que não há saída da "situação hermenêutica". Gadamer, no entanto, opta por formular a interpretação como ação. Desse modo, referindo-se especificamente à possibilidade de uma crítica feminista da hermenêutica, Warnke (1994, p. 114) declara:

A estrutura do poder hierárquico que está por detrás dos pontos de vista sobre o devido papel das mulheres não é uma estrutura inacessível à exposição através da linguagem. Na verdade, segundo o ponto de vista de Gadamer, falar sobre a estrutura do poder hierárquico já é interpretar e, portanto, agir de modo hermenêutico.

Para Gadamer (1983), o fato de nossa compreensão ser sempre inexoravelmente instruída pelo preconceito não implica que ela aja em defesa do status quo. A autoridade cognitiva da tradição não está simetricamente relacionada a sua autoridade política. O processo de compreensão da estrutura do preconceito pode levar em última análise a um reconhecimento da autoridade. Desse modo, uma postura "conservadora" pode em si oferecer a vantagem de expor aquilo que poderia de outra maneira permanecer oculto. A autoridade • da tradição precisa ser reavaliada em relação direta à própria tradição.

Desse modo, mesmo que discordemos dos pontos de vista tradicionais das necessidades e interesses das mulheres, minha compreensão desses pontos de vista envolve uma espécie de mediação formal com eles na medida em que chego a um acordo com eles e incorporo minhas diferenças com eles em meu próprio autoconhecimento. (Warnke 1994, p. 137)

É nesse contexto que quero argumentar que não parecem plausíveis as asserções de Habermas que se referem à impossibilidade de uma hermenêutica fazer críticas. Deve ser observado, no entanto, que, para compreender como é possível uma crítica vinda de dentro de uma "situação hermenêutica", é necessário estar ciente da relação entre a tradição e a auto compreensão humana.

Trecho de meu livro “Em busca da Dimensão Ética da Educação Ambiental” ( Ed. Papirus )


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