MAURO GRÜN
Doutor em Ética e Educação Ambiental na
University of Western Australia
“Que morram as pessoas famintas, que viva a Floresta".
Essa é a conclusão a que chega o filósofo
norte-americano Holmes Rolston, após examinar o problema do desflorestamento e
perda da biodiversidade natural no Brasil, África do Sul e Madagascar. Ele inicia
seu texto intitulado "Alimentar as pessoas ou salvar a Natureza?"
(1996) criticando a declaração da Rio-92 e denunciando o seu tom marcadamente
antropocêntrico. "Esta deveria ter sido a carta da Terra, mas as nações em
desenvolvimento estavam mais interessadas em satisfazer as necessidades dos
pobres", lamenta Rolston. O filósofo argumenta que, muitas vezes, quando
deixamos de salvar a natureza para alimentar pessoas famintas, nós não estamos
ganhando, mas sim perdendo. Assim, ele conclui que nós devemos salvar a
natureza mesmo que isso resulte na morte de pessoas famintas.
Como o próprio título de seu trabalho sugere, Rolston acredita que a
principal causa do desflorestamento estaria nas "pessoas famintas"
que desmatam a floresta. Ele pretende fundamentar seus posicionamentos
políticos tomando por base a sua teoria do valor. No entanto, suas pretensões
dão margem a vários problemas epistemológicos e éticos. Particularmente quando
aplicado à Floresta Amazônica, o seu dualismo "pessoas famintas versus
natureza" não funciona. Vejamos o que acontece quando consideramos a
situação da Amazônia sob uma outra ótica. Muitas vezes a percepção de um problema
é uma questão de Gestalt. Depende de como o problema é reconfigurado e temos
até um novo problema. Quando reconfiguramos o problema do desflorestamento e da
perda de biodiversidade natural analisando a noção de "ator", temos
uma situação muito diferente daquela apresentada pela dicotomia "pessoas
famintas versus natureza". Vejamos o que acontece.
Atores na arena
ambiental
Poucas noções são tão problemáticas no âmbito das
ciências sociais quanto a noção de "ator". As ciências sociais têm
trabalhado, basicamente, com versões do individualismo metodológico — no qual
existe um sujeito instituinte — ou com versões do estruturalismo — análises de
viés econômico que levam em conta o jogo entre as superestruturas e as
infraestruturas. A primeira pressupõe que a vida social e os atores que a
constituem podem ser entendidos exclusivamente através de sujeitos humanos
constituintes, ao passo que a segunda analisa a vida social como uma espécie de
resultado produzido pelas ações das estruturas. Recentemente surgiu uma terceira
versão que é parcialmente derivada, parcialmente uma ruptura com a segunda: o
pós-estruturalismo. Nas trilhas de Baudriliard e Lyotard, o pós-estruturalismo
desconsidera a existência de atores (uma vez que não existe agência), nem na
acepção liberal humanista individualista de Max Weber, nem na acepção
marxista-estrutural de Luis Althusser. Os sujeitos encontram-se
irremediavelmente dissolvidos em um mundo de simulacros e reproduções. Todas
essas alternativas são, desde já, insatisfatórias para compreender as dinâmicas
das eco-políticas e seus respectivos atores.
A noção mais comum (e também a mais simplista) no
debate sobre desflorestamento é a de que somente indivíduos podem ser realmente
atores. Tal noção está diretamente afiliada à concepção Weberiana segundo a qual
apenas os indivíduos de carne e osso são realmente atores. Análises sobre desflorestamento
que trabalham com base na dicotomia "pessoas famintas versus
natureza" constituem um bom exemplo dessa simplificação.
Weber insiste que as relações sociais e as coletividades sociais são
sempre reduzíveis em princípio às ações de indivíduos. Inúmeros trabalhos, no
entanto, têm desfeito esse reducionismo.
Não raro os processos de desflorestamento resultam de uma co-agência onde
existe cooperação entre governo e empresas.
Hindess salienta que os seres humanos não são os únicos atores
relevantes. Ele critica as teorias sociais individualistas e argumenta que
existem importantes atores no mundo moderno que não são indivíduos humanos, por
exemplo, igrejas, agências estatais, empresas capitalistas, partidos políticos,
sindicatos etc. Para ele, "existe uma aceitação tácita na qual a posição
de que existem importantes atores no mundo moderno outros que indivíduos não
pode ser disputada. Mas essa aceitação tácita pode obscurecer diferenças
radicais precisamente em como a noção de ator é entendida." De acordo com
o autor, empresas capitalistas, igrejas, organizações criminais "são todos
atores no sentido de que elas dispõem dos meios para chegar a decisões e para
agir em algumas delas." Ele salienta ainda que não só existem atores outros
que indivíduos humanos, mas alguns deles têm importantes consequências no mundo
moderno. "Consideradas em termos de seu impacto social, muitas das mais
significantes decisões são tomadas por atores outros que indivíduos humanos —
ou seja, governos, grandes corporações, sindicatos, igrejas. Ele vai adiante e
diz que o que chamamos "nossas decisões" (como cidadãos ou como
pessoas naturais) não podem esperar a realização de decisões coletivas sem o
envolvimento adicional de atores sociais (corporações, instituições).
Se distinguir os diferentes atores no cenário das
ciências sociais já é difícil, as coisas se complicam ainda mais quando entramos
no campo das eco políticas. O trabalho de Porter and Brown representa um
esforço nessa direção. Em Global Environmental Politics, eles identificam
vários atores, movidos por diferentes interesses na "arena ambiental":
Estado-Nação; organizações internacionais, instituições multilaterais (tais
como o Banco Mundial, FMI etc) e organizações não-governamentais (ONGs). Todos
esses atores presentes na arena ambiental são precisamente o que Hindess chama
"atores sociais", ou seja, atores outros que indivíduos humanos.
Os Estados
Os Estados têm um papel primordial nas dinâmicas de
desflorestamento. Embora eles nem sempre tenham uma ação mais direta e visível,
são eles os responsáveis pelas formulações e regulamentações (ou
desregulamentações) das políticas ambientais. Mas eles raramente agem
autonomamente. Não raro os processos de desflorestamento resultam de uma
co-agência onde existe cooperação entre governo (Estado enquanto ator) e
empresas (corporações enquanto atores). Como vimos anteriormente, grande parte
da devastação da Amazônia provém justamente de situações em que o Estado agiu
em conjunto com os interesses de companhias multinacionais (corporate actors).
Esse tipo de aliança, no entanto, não é um privilégio de países do Terceiro
Mundo. "No Japão, a fusão dos interesses do Estado burocrático e do
comércio e da indústria foram mais longe do que em qualquer outro lugar do
mundo industrializado".
Para compreender por que a dicotomia de Rolston
entre pessoas famintas versus natureza não funciona é necessário compreender
ainda que no interior do próprio Estado existem muitas dinâmicas e atores
sociais. Somente assim poderemos identificar as dinâmicas responsáveis pela
desorganização socioambiental. Segundo Acselrad, é preciso, antes de mais nada,
reverter o processo de desorganização só-cio-ambiental da Amazônia. E a
"reversão do processo de desorganização socioambiental da Amazônia só pode
ser alcançada por meio da promoção de dinâmicas sócio-políticas que se anteponham
às práticas técnicas e econômicas responsáveis pela predação. Isto porque de
nada serve criar ilhas de conservação se não se interrompe a dinâmica destrutiva
da especulação fundiária, dos grandes projetos governamentais de mineração e hidroeletricidade,
das pressões provocadas pela inviabilização social das populações ribeirinhas e
pela expulsão dos pequenos produtores de suas terras. De nada serve produzir
zoneamentos ecológicos por modernos meios técnicos de sensoriamento remoto se é
ignorada a enorme diversidade de formas sociais da região, bem como suas
diferentes modalidades técnicas e culturais de interação com os meios físicos e
bióticos locais". A dicotomia pessoas famintas versus natureza não dá
conta disso.
Ecologia Política
A análise de algumas das dinâmicas que causam,
sustentam e promovem o desflorestamento e a perda da diversidade biológica nos
revela que as coisas não são assim tão simples como sugerem dicotomias simplistas
como "pessoas famintas versus natureza". Precisamos de análises mais
sérias, mais rigorosas metodologicamente e mais atentas às diferentes dinâmicas
envolvidas nos processos de desflorestamento. Quando nos encontramos diante de
uma situação em que realmente esteja ocorrendo o tipo de configuração descrita
pela dicotomia "pessoas famintas versus natureza", é porque muita
coisa aconteceu para que tal situação fosse engendrada.
Analisar a dicotomia "pessoas famintas X
natureza" sem levar em conta o que a produziu é analisar apenas o final da
história. Simplesmente analisar essa
dicotomia sem levar em conta o que a produziu e quais as suas correlações com
outros fatores é analisar apenas o final da história. É como se um crítico que,
tendo chegado atrasado ao cinema e assistido apenas os últimos cinco minutos de
um filme, no outro dia escrevesse um review altamente negativo no jornal, criticando
os atores, o argumento, a produção artística, a direção etc. É precisamente
isto que fazem aqueles que veem apenas pessoas e árvores onde na verdade existe
um complexo cenário cultural, político, social e ético. É esta a diferença
entre analisarmos eventos e analisarmos processos. Tendo isso em mente podemos
voltar a nossa questão inicial.
Existem pessoas famintas devastando as florestas? A
resposta é um sonoro sim.
De acordo com o biólogo Norman Myers, existem atualmente no mundo 300
milhões de pequenos agricultores ateando fogo e adentrando mais e mais nas
florestas a cada ano, e eles progressivamente levam seus solos frágeis à
exaustão. Mas o próprio Myers é também o primeiro a reconhecer que este
agricultor não é mais responsável por desmatar a floresta "do que um soldado
que é considerado culpado por lutar em uma guerra".
Para analisar o fenômeno do desflorestamento como
um processo e não como um "fato puro" é preciso, antes de mais nada,
colocar o problema em perspectiva e reconstrui-lo historicamente. Isso nos
permite trazer à tona os inúmeros atores e variáveis culturais envolvidas na
arena ambiental. Quando se trata de desflorestamento não há nunca uma única
causa isolada. Justamente por isso nossas análises precisam estar atentas à
complexidade e interação dos diversos atores, seus diferentes interesses e seus
diferentes valores. Durham, ao analisar as dinâmicas de desflorestamento na Guatemala,
observa que "milhares de rancheiros, madeireiros e especuladores não
apenas competem por terras relativamente fáceis de serem levadas à exaustão,
mas cada um também pavimenta o caminho para que as forças do outro desmatem
mais e mais florestas".
Em um tal cenário, simplificações baseadas na
oposição "pessoas famintas versus natureza" são de pouca ou nenhuma
utilidade. Comentando a necessidade de uma virada na direção de uma
"ecologia política", Durham nos aconselha a prestar mais atenção nas
variáveis culturais que estão em jogo, compreendendo as conexões entre
degradação ambiental, questões de raça, classe, gênero, etnia e o que Hindess
chama "atores sociais". Não se tratam, portanto, de ocorrências
aleatórias ou caóticas. As dinâmicas são identificáveis e em grande parte estão
ligadas a uma má distribuição dos recursos naturais. Uma distribuição mais
justa desses recursos é fundamental.
Não podemos cercar uma área
verde, criar um gueto ecológico e
expulsar as pessoas que estão lá: é injusto e não funciona.
Não é dicotomizando o problema do desflorestamento
e perda de biodiversidade entre "pessoas famintas versus natureza"
que nós conseguiremos encontrar melhores políticas ambientais. Minhas
conclusões vão exatamente na direção oposta. Apenas promovendo uma melhor
distribuição dos recursos naturais para as pessoas cuja as vidas dependem mais
diretamente deles é que obteremos algum sucesso. Nós não podemos simplesmente
cercar uma área verde, criar um gueto ecológico e expulsar as pessoas que lá se
encontram. Além de ser injusto, isso não funciona. Como observa Painter,
"a melhor maneira de se viver em harmonia com outros organismos do Planeta
é promovendo equitativamente o acesso a recursos naturais para as pessoas cujas
vidas dependem desses recursos." Isso é válido tanto para o caso
específico do Brasil, onde urge a necessidade de uma reforma agrária e de uma
melhor distribuição de renda, como para as estruturas globais internacionais
que sustentam as relações entre os países do Norte e do Sul.
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