Pessoas famintas versus natureza

on quarta-feira, 6 de agosto de 2014
Pessoas famintas versus natureza

MAURO GRÜN
Doutor em Ética e Educação Ambiental na University of Western Australia

“Que morram as pessoas famintas, que viva a Floresta".

Essa é a conclusão a que chega o filósofo norte-americano Holmes Rolston, após examinar o problema do desflorestamento e perda da biodiversidade natural no Brasil, África do Sul e Madagascar. Ele inicia seu texto intitulado "Alimentar as pessoas ou salvar a Natureza?" (1996) criticando a declaração da Rio-92 e denunciando o seu tom marcadamente antropocêntrico. "Esta deveria ter sido a carta da Terra, mas as nações em desenvolvimento estavam mais interessadas em satisfazer as necessidades dos pobres", lamenta Rolston. O filósofo argumenta que, muitas vezes, quando deixamos de salvar a natureza para alimentar pessoas famintas, nós não estamos ganhando, mas sim perdendo. Assim, ele conclui que nós devemos salvar a natureza mesmo que isso resulte na morte de pessoas famintas.

Como o próprio título de seu trabalho sugere, Rolston acredita que a principal causa do desflorestamento estaria nas "pessoas famintas" que desmatam a floresta. Ele pretende fundamentar seus posicionamentos políticos tomando por base a sua teoria do valor. No entanto, suas pretensões dão margem a vários problemas epistemológicos e éticos. Particularmente quando aplicado à Floresta Amazônica, o seu dualismo "pessoas famintas versus natureza" não funciona. Vejamos o que acontece quando consideramos a situação da Amazônia sob uma outra ótica. Muitas vezes a percepção de um problema é uma questão de Gestalt. Depende de como o problema é reconfigurado e temos até um novo problema. Quando reconfiguramos o problema do desflorestamento e da perda de biodiversidade natural analisando a noção de "ator", temos uma situação muito diferente daquela apresentada pela dicotomia "pessoas famintas versus natureza". Vejamos o que acontece.

Atores na arena ambiental
Poucas noções são tão problemáticas no âmbito das ciências sociais quanto a noção de "ator". As ciências sociais têm trabalhado, basicamente, com versões do individualismo metodológico — no qual existe um sujeito instituinte — ou com versões do estruturalismo — análises de viés econômico que levam em conta o jogo entre as superestruturas e as infraestruturas. A primeira pressupõe que a vida social e os atores que a constituem podem ser entendidos exclusivamente através de sujeitos humanos constituintes, ao passo que a segunda analisa a vida social como uma espécie de resultado produzido pelas ações das estruturas. Recentemente surgiu uma terceira versão que é parcialmente derivada, parcialmente uma ruptura com a segunda: o pós-estruturalismo. Nas trilhas de Baudriliard e Lyotard, o pós-estruturalismo desconsidera a existência de atores (uma vez que não existe agência), nem na acepção liberal humanista individualista de Max Weber, nem na acepção marxista-estrutural de Luis Althusser. Os sujeitos encontram-se irremediavelmente dissolvidos em um mundo de simulacros e reproduções. Todas essas alternativas são, desde já, insatisfatórias para compreender as dinâmicas das eco-políticas e seus respectivos atores.

A noção mais comum (e também a mais simplista) no debate sobre desflorestamento é a de que somente indivíduos podem ser realmente atores. Tal noção está diretamente afiliada à concepção Weberiana segundo a qual apenas os indivíduos de carne e osso são realmente atores. Análises sobre desflorestamento que trabalham com base na dicotomia "pessoas famintas versus natureza" constituem um bom exemplo dessa simplificação.
Weber insiste que as relações sociais e as coletividades sociais são sempre reduzíveis em princípio às ações de indivíduos. Inúmeros trabalhos, no entanto, têm desfeito esse reducionismo.
Não raro os processos de desflorestamento resultam de uma co-agência onde existe cooperação entre governo e empresas.

        Hindess salienta que os seres humanos não são os únicos atores relevantes. Ele critica as teorias sociais individualistas e argumenta que existem importantes atores no mundo moderno que não são indivíduos humanos, por exemplo, igrejas, agências estatais, empresas capitalistas, partidos políticos, sindicatos etc. Para ele, "existe uma aceitação tácita na qual a posição de que existem importantes atores no mundo moderno outros que indivíduos não pode ser disputada. Mas essa aceitação tácita pode obscurecer diferenças radicais precisamente em como a noção de ator é entendida." De acordo com o autor, empresas capitalistas, igrejas, organizações criminais "são todos atores no sentido de que elas dispõem dos meios para chegar a decisões e para agir em algumas delas." Ele salienta ainda que não só existem atores outros que indivíduos humanos, mas alguns deles têm importantes consequências no mundo moderno. "Consideradas em termos de seu impacto social, muitas das mais significantes decisões são tomadas por atores outros que indivíduos humanos — ou seja, governos, grandes corporações, sindicatos, igrejas. Ele vai adiante e diz que o que chamamos "nossas decisões" (como cidadãos ou como pessoas naturais) não podem esperar a realização de decisões coletivas sem o envolvimento adicional de atores sociais (corporações, instituições).

Se distinguir os diferentes atores no cenário das ciências sociais já é difícil, as coisas se complicam ainda mais quando entramos no campo das eco políticas. O trabalho de Porter and Brown representa um esforço nessa direção. Em Global Environmental Politics, eles identificam vários atores, movidos por diferentes interesses na "arena ambiental": Estado-Nação; organizações internacionais, instituições multilaterais (tais como o Banco Mundial, FMI etc) e organizações não-governamentais (ONGs). Todos esses atores presentes na arena ambiental são precisamente o que Hindess chama "atores sociais", ou seja, atores outros que indivíduos humanos.

Os Estados
Os Estados têm um papel primordial nas dinâmicas de desflorestamento. Embora eles nem sempre tenham uma ação mais direta e visível, são eles os responsáveis pelas formulações e regulamentações (ou desregulamentações) das políticas ambientais. Mas eles raramente agem autonomamente. Não raro os processos de desflorestamento resultam de uma co-agência onde existe cooperação entre governo (Estado enquanto ator) e empresas (corporações enquanto atores). Como vimos anteriormente, grande parte da devastação da Amazônia provém justamente de situações em que o Estado agiu em conjunto com os interesses de companhias multinacionais (corporate actors). Esse tipo de aliança, no entanto, não é um privilégio de países do Terceiro Mundo. "No Japão, a fusão dos interesses do Estado burocrático e do comércio e da indústria foram mais longe do que em qualquer outro lugar do mundo industrializado".

Para compreender por que a dicotomia de Rolston entre pessoas famintas versus natureza não funciona é necessário compreender ainda que no interior do próprio Estado existem muitas dinâmicas e atores sociais. Somente assim poderemos identificar as dinâmicas responsáveis pela desorganização socioambiental. Segundo Acselrad, é preciso, antes de mais nada, reverter o processo de desorganização só-cio-ambiental da Amazônia. E a "reversão do processo de desorganização socioambiental da Amazônia só pode ser alcançada por meio da promoção de dinâmicas sócio-políticas que se anteponham às práticas técnicas e econômicas responsáveis pela predação. Isto porque de nada serve criar ilhas de conservação se não se interrompe a dinâmica destrutiva da especulação fundiária, dos grandes projetos governamentais de mineração e hidroeletricidade, das pressões provocadas pela inviabilização social das populações ribeirinhas e pela expulsão dos pequenos produtores de suas terras. De nada serve produzir zoneamentos ecológicos por modernos meios técnicos de sensoriamento remoto se é ignorada a enorme diversidade de formas sociais da região, bem como suas diferentes modalidades técnicas e culturais de interação com os meios físicos e bióticos locais". A dicotomia pessoas famintas versus natureza não dá conta disso.

Ecologia Política
A análise de algumas das dinâmicas que causam, sustentam e promovem o desflorestamento e a perda da diversidade biológica nos revela que as coisas não são assim tão simples como sugerem dicotomias simplistas como "pessoas famintas versus natureza". Precisamos de análises mais sérias, mais rigorosas metodologicamente e mais atentas às diferentes dinâmicas envolvidas nos processos de desflorestamento. Quando nos encontramos diante de uma situação em que realmente esteja ocorrendo o tipo de configuração descrita pela dicotomia "pessoas famintas versus natureza", é porque muita coisa aconteceu para que tal situação fosse engendrada.

Analisar a dicotomia "pessoas famintas  X natureza" sem levar em conta o que a produziu é analisar apenas o final da história.  Simplesmente analisar essa dicotomia sem levar em conta o que a produziu e quais as suas correlações com outros fatores é analisar apenas o final da história. É como se um crítico que, tendo chegado atrasado ao cinema e assistido apenas os últimos cinco minutos de um filme, no outro dia escrevesse um review altamente negativo no jornal, criticando os atores, o argumento, a produção artística, a direção etc. É precisamente isto que fazem aqueles que veem apenas pessoas e árvores onde na verdade existe um complexo cenário cultural, político, social e ético. É esta a diferença entre analisarmos eventos e analisarmos processos. Tendo isso em mente podemos voltar a nossa questão inicial.

Existem pessoas famintas devastando as florestas? A resposta é um sonoro sim.
De acordo com o biólogo Norman Myers, existem atualmente no mundo 300 milhões de pequenos agricultores ateando fogo e adentrando mais e mais nas florestas a cada ano, e eles progressivamente levam seus solos frágeis à exaustão. Mas o próprio Myers é também o primeiro a reconhecer que este agricultor não é mais responsável por desmatar a floresta "do que um soldado que é considerado culpado por lutar em uma guerra".
Para analisar o fenômeno do desflorestamento como um processo e não como um "fato puro" é preciso, antes de mais nada, colocar o problema em perspectiva e reconstrui-lo historicamente. Isso nos permite trazer à tona os inúmeros atores e variáveis culturais envolvidas na arena ambiental. Quando se trata de desflorestamento não há nunca uma única causa isolada. Justamente por isso nossas análises precisam estar atentas à complexidade e interação dos diversos atores, seus diferentes interesses e seus diferentes valores. Durham, ao analisar as dinâmicas de desflorestamento na Guatemala, observa que "milhares de rancheiros, madeireiros e especuladores não apenas competem por terras relativamente fáceis de serem levadas à exaustão, mas cada um também pavimenta o caminho para que as forças do outro desmatem mais e mais florestas".
Em um tal cenário, simplificações baseadas na oposição "pessoas famintas versus natureza" são de pouca ou nenhuma utilidade. Comentando a necessidade de uma virada na direção de uma "ecologia política", Durham nos aconselha a prestar mais atenção nas variáveis culturais que estão em jogo, compreendendo as conexões entre degradação ambiental, questões de raça, classe, gênero, etnia e o que Hindess chama "atores sociais". Não se tratam, portanto, de ocorrências aleatórias ou caóticas. As dinâmicas são identificáveis e em grande parte estão ligadas a uma má distribuição dos recursos naturais. Uma distribuição mais justa desses recursos é fundamental.
Não podemos cercar  uma área verde,  criar um gueto ecológico e expulsar as pessoas que estão lá: é injusto e não funciona.
Não é dicotomizando o problema do desflorestamento e perda de biodiversidade entre "pessoas famintas versus natureza" que nós conseguiremos encontrar melhores políticas ambientais. Minhas conclusões vão exatamente na direção oposta. Apenas promovendo uma melhor distribuição dos recursos naturais para as pessoas cuja as vidas dependem mais diretamente deles é que obteremos algum sucesso. Nós não podemos simplesmente cercar uma área verde, criar um gueto ecológico e expulsar as pessoas que lá se encontram. Além de ser injusto, isso não funciona. Como observa Painter, "a melhor maneira de se viver em harmonia com outros organismos do Planeta é promovendo equitativamente o acesso a recursos naturais para as pessoas cujas vidas dependem desses recursos." Isso é válido tanto para o caso específico do Brasil, onde urge a necessidade de uma reforma agrária e de uma melhor distribuição de renda, como para as estruturas globais internacionais que sustentam as relações entre os países do Norte e do Sul.

Bibliografia:
ACSELRAD, Henri. Planejamento autoritário e desordem socioambiental na Amazônia: crônica do deslocamento de populações em Tucuruí. Revista de Administração Pública, 1991.

DURHAM, W. Political Ecology and Environmental Destruction in Latin America in PAINTER, M. and 

DURHAM, W. H. The Social Causes of Environmental Destruction in Latin America. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1995.

GEORGE, S. The Debt Boomerang: How Third World Debt Harms Us All. Boulder: Westview, 1992.

HINDESS, B. Political Choice & Choice Structure , em Analysis of Actors, Interests and Rationality. Aldershot: Edward Elgar, 1989.

MYERS, Norman Greenpeace Report.

MYERS, N. and SIMON, J. Scarcity or abundance? A Debate on the Environment. London: W. W. Norton & Co., 1994.

PAINTER, M. Introduction: Anthropological Perspectives on environmental Destruction in PAINTER, 

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PORTER, G. and BROWN, J. W. Global Environmental Politics. Boulder: Westview Press, 1991.

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