A natureza viva

on quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Gadamer (1995) salienta também que a principal diferença entre o pensamento filosófico e a ciência moderna se dá no contexto de interpretações divergentes da experiência verbal do mundo. A ciência moderna de fato desenvolveu o ideal da linguagem simbólica pura cujo objetivo era precisamente conquistar e dominar essa linguagem viva. Esse processo ocorreu tanto na matematização da ciência do século XVII quanto no pensamento neokantiano que interpretava o ideal platônico em termos de uma lei. No entanto, pode-se salientar que no mundo grego a coisa reteve ainda certa dignidade. A experiência verbalmente constituída ainda não expressa o que Heidegger denominou o pronto para usar que foi calculado e medido.


Experiências verbalmente constituídas como essas expressavam o que os seres humanos consideravam de valor. A compreensão de uma ética ambiental emerge desse modo exatamente por meio desse processo, visto que rejeita a metodologia de objetificação das ciências naturais. Para evitar ficar preso à postura metodológica das ciências naturais que vê a Natureza meramente como objeto a ser conquistado, é crucial que busquemos uma compreensão constituída verbalmente na linguagem viva. Então, é preciso enfatizar uma Natureza "viva", o sonho daqueles que pretendem superar o mecanicismo, o antropocentrismo e o reducionismo da ciência moderna. Assim, uma linguagem "viva" precisa emergir de nosso diálogo com a Natureza. Uma linguagem pura, não ambígua, presa no nível do simbolismo, não pode oferecer um meio de garantia de satisfação desse ideal ambientalista-dialógico.(...)

Ouvindo a Natureza
Assim deve ser enfatizado que os filósofos gregos não baseavam seus estudos sobre a compreensão do conhecimento na distinção entre sujeito e objeto que foi invocada pelos modernos como fonte de análise objetiva. Essa noção só emergiu com o pensamento moderno. Na verdade.
Gadamer (1995) argumenta precisamente que é necessário superar as restrições de tais estruturas de pensamento, caracterizadas como são por uma confiança no pensamento dicotômico cartesiano. Além disso, argumenta que tais erros estão intrinsecamente ligados a uma crença na linguagem como meio através do qual circule o significado. Em contraste com o sujeito/ objeto binário, a experiência hermenêutica baseia-se num diálogo entre a tradição e o intérprete. Especificamente, esse é o diálogo com a Natureza. Nesse contexto, o interrogador torna-se, desse modo, o próprio interrogado. Pois no processo de investigação das questões particulares da Natureza somos surpreendidos pelas respostas que são na verdade novas perguntas, só que agora com a Natureza no papel do pesquisador, colocando perguntas. O ponto é que no processo de fazer perguntas sobre a Natureza, emerge algo novo na linguagem.

Busto de Sócrates - University of Western Australia 

A Natureza reemerge à existência ao mesmo tempo em que se apresenta. Nesse diálogo dá-se forma a um novo espaço dialógico, um espaço em que nenhum participante é diretamente envolvido. Gadamer define essa relação dialética única como ouvir: "Não é que só o que ouve também é endereçado, mas o que é endereçado precisa ouvir quer queira ou não" (1995, p. 462). Para o filósofo alemão, esse fenômeno de escutar é fundamental para a experiência hermenêutica. A essa altura, a escrita torna-se obstáculo para a genuína tarefa de escutar.

A experiência hermenêutica é assim centralmente dependente da linguagem enquanto evento. Essa compreensão é, então, o desafio mais radical para a metodologia científica moderna. Ela supõe que, numa prática crítica mais genuinamente sintonizada com as necessidades do ambiente, esse ouvir dialético conferiria à Natureza uma voz falante. Gadamer define tal processo como a capacidade da "escuta" hermenêutica. Além disso, observa que, para essa hermenêutica emergir, urna consciência de um Outro inteiramente participante precisará ser criada, um Outro que existe como mais do que um simples objeto de pesquisa. Para ele, a linguagem desse diálogo não denota uma fala meramente em termos de gramática e sintaxe, mas um diálogo caracterizado pelas conotações mais ricas de tudo que é dito ou deduzido na tradição. Gadamer (idem) salienta que, na metodologia analítica moderna, a coisa examinada é objetificada. Isso é o contraste direto com a forma corno os gregos pensavam e agiam, pois em seu trabalho a coisa mesma reforça seu ser. Argumentar uma tese da fala como meio de diálogo é atribuir uma visão marcadamente distinta da dialética grega e também da metodologia científica moderna. Isso dito, é importante observar que a hermenêutica filosófica não se preocupa com a eliminação do poder da fala, uma preocupação que era central para a dialética grega. Contudo, mantém algumas semelhanças, especificamente na medida em que continue sustentando a necessidade de compreender algo no contexto de suas ações, como um evento que resulta de um escutar ininterrupto.

A linguagem revela-se em uma natureza dialética e a compreensão de uma Natureza Viva é sempre, desse modo, um vir-à-fala. Consequentemente, nossa experiência com a Natureza é hermenêutica. Na compreensão hermenêutica, a Natureza é expressa sempre de um modo novo na linguagem. A compreensão hermenêutica da Natureza desse modo determina tanto a essência de qualquer diálogo com a Natureza quanto a estrutura lógica de uma questão e a abordagem da resposta. O significado de Natureza é determinado pelo horizonte das questões. Com o propósito de entender a complexidade dessa compreensão, é importante apreendermos também o contexto que origina cada questão. Pois cada questão é já uma resposta à outra questão. Nenhuma compreensão genuína da Natureza é possível sem uma consciência dessa estrutura. Buscar compreender o que está por trás do que é dito é simultaneamente buscar ir além do que tem sido dito.

Coffee break - Western Australia

A compreensão da Natureza é viabilizada apenas quando apreendemos o horizonte de uma questão e, consequentemente, assim fazendo, abrimos o leque de possibilidades de outras respostas. Para Gadamer (1995), a lógica das ciências humanas é de fato a lógica do fazer a pergunta. Ele acredita, também, que essa lógica é perfeitamente adaptada a uma compreensão mais frutífera de nossa relação com a Natureza. A concepção prévia da completude constitui o axioma da hermenêutica. Além disso, tal condição é elementar para toda e qualquer compreensão da Natureza. Ela não é uma compreensão formal. "Assim a interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito, histórico, na medida em que toda interpretação precisa começar em algum lugar e buscar suplantar o unilateralismo que essa inevitavelmente produza" (idem, p. 471). É por essas razões que estou argumentando que a abordagem hermenêutica diante do ambiente é superior à monológica e anônima do ambiente que é típica da ciência moderna que o trata meramente como um objeto. Por meio de uma interpretação hermenêutica, é possível desenvolver uma atitude mais humilde diante da Natureza e reconhecer que nossa compreensão é sempre incompleta. A dialética da abordagem da pergunta e da resposta determina a natureza da interpretação como evento.

Nossas próprias "apropriações" da Natureza são determinadas historicamente. Cada uma dessas "apropriações" é a experiência de um "aspecto" da coisa. Tal abordagem leva, desse modo, a uma interpretação especulativa da Natureza, em vez de uma interpretação prescritiva. Essa interpretação é imediatamente uma entre várias e sempre unicamente diferente, questão que retomarei quando abordar o debate entre Derrida e Gadamer. O ponto é então que um íon de compreensão da Natureza não é uma replicação de algo, mas, em vez disso, a criação de uma nova interpretação. Em suma, qualquer interpretação da Natureza é inseparável de uma linguagem "viva". "Nossa investigação tem sido guiada pela ideia básica de que a linguagem é um meio em que eu e o mundo nos encontramos ou, em vez disso, manifestamos nosso estar junto" (Gadamer 1995, p. 474).

Trecho do meu livro "Em Busca da Dimensão Ética da Educação Ambiental"
Mauro Grün - Doutor em Ética e Educação Ambiental pela University of Western Australia

1 comentários:

Filipi Vieira Amorim disse...

Querido professor Mauro, fiquei muito feliz em encontrar seu blog, parabéns pelas postagens. A partir dessa descoberta, certamente, serei um leitor assíduo. Encontrei o professor Flickinger em Passo Fundo na semana passada, ele pediu que, caso eu tivesse a oportunidade, transmitisse um forte abraço ao senhor. Deixo também, registrado aqui, minha admiração pelos seus escritos e pela pessoa que és. Tenho imensa alegria em ter sido seu orientando no mestrado e tê-lo como minha principal referência acadêmica e intelectual. Um forte e carinhoso abraço, Filipi.