Mauro
Grün
JUSTIFICATIVA:
Ainda são poucas as abordagens mais
filosóficas dos problemas ambientais no Brasil. Entre os principais podemos
encontrar Grün (2007 a, 2007b), Pelizzoli (2004) e Junger (2004). Grün (2007 a)
tem se dedicado a criticar a concepção objetivista de ciência moderna e, recentemente
à estética (Grün, 2006),utilizando para isto a hermenêutica de Gadamer. Já
Pelizzoli (2004) trabalha com a fenomenologia de Husserl, Heidegger e Levinas.
Em outra direção, mas também com abordagens
filosóficas situa-se Nalini (2003) que tem preocupações éticas com a qualidade
dos ambientes urbanos. E Junger (2004), por sua vez, trabalha o modo através do
qual as transformações socioeconômicas afetam ambientes humanos e a saúde
coletiva (Griffith, 2009 a,b). Recentemente, o Ministério da Educação, através
da Coordenadora de Educação Ambiental no Brasil, Rachel Trajber, encomendou o
livro "Pensar o ambiente: as bases filosóficas da Educação
Ambiental". Além de ser um dos organizadores da coletânea, tive a
oportunidade de escrever dois capítulos, nos quais destaco a necessidade da
historicidade como horizonte de nossas formulações das questões ambientais e a
importância da linguagem para a compreensão dos problemas e possibilidades
envolvidos em elaborar um conceito contemporâneo de Natureza para a Educação
Ambiental.
Retomando algumas concepções presentes na
dialética grega e na filosofia hermenêutica de Gadamer, destaco que o
conhecimento não resultava de uma atividade metodológica da consciência, mas
era algo que a coisa fez e o pensamento sofre. O livro com esses comentários
teve uma tiragem de 5.000 cópias (com distribuição gratuita nas escolas) e
consta também no site do MEC/INPE.
Em meu estágio pós-doutoral, pretendo
continuar e ampliar o diálogo da Educação Ambiental com suas bases filosóficas,
epistemológicas, éticas e estéticas. Sobre isso Nascimento (2004 apud Griffth, 2009, p.6) nos diz: "que
os filósofos brasileiros deveriam se dedicar mais à reflexão e publicar mais
sobre a questão ambiental. Segundo ele, muitas das ações ambientais tomadas no
Brasil ainda carecem de fundamentos filosóficos, muitas vezes são
intelectualmente inconsistentes. A recomendação final desse pesquisador é que
os filósofos brasileiros esclareçam melhor sua conceituação do status
ontológico da natureza, ou seja, facilitaria o entendimento e a definição de
"meio ambiente" no Brasil".
O presente projeto caminha nessa direção,
principalmente considerando a valiosa contribuição que o professor colaborador
pode dar. O Professor Eugene Hargrove (colaborador) do Departamento de
Filosofia da University of North Texas é editor do Environmental Ethics,
periódico dedicado à publicações interdisciplinares dos aspectos filosóficos
dos problemas ambientais e Presidente do Center for Environmental Philosophy,
que é referência internacional no campo da estética ambiental. E isso
proporciona uma possibilidade única de contextualizar o Brasil no emergente
debate mundial sobre Educação Ambiental, Ética Ambiental e Estética Ambiental.
INTRODUÇÃO
Minha trajetória em Educação Ambiental começou
há mais ou menos quinze anos com a publicação de "Ética e Educação
Ambiental: a conexão necessária", hoje na 14ª edição pela Editora Papirus,
onde apontei para a impossibilidade de continuarmos presos a uma concepção
mecanicista da Natureza. Sucederam-se diversos artigos e capítulos de livros
abordando a temática do antropocentrismo e do racionalismo da modernidade
Ocidental e suas consequências para a devastação ambiental.
Através da hermenêutica de Gadamer tenho
procurado demonstrar como o diálogo com a história, com a arte e a filosofia
pode nos levar a uma concepção melhor de qual é o nosso papel em relação à
Natureza. Em livro recente (tese de doutorado defendida na University of
Western Australia), propus uma ética de parceria com a Natureza onde explicito
alguns pressupostos básicos de uma compreensão sustentável de nossas relações
com o mundo não-humano.
Em Grün (2007b) propus uma concepção de
Educação Ambiental na qual a Natureza fosse vista em sua outridade em relação
ao mundo humano. Criticando a concepção antropocêntrica da ciência Cartesiana,
observo que precisamos de "uma ciência em que a Natureza não é dominada,
mas vista e experienciada como parceira num diálogo mutuamente benéfico"
(Grün, 2007, p.166).
"Poderíamos talvez sobreviver como humanidade
se fôssemos capazes de aprender que não podemos simplesmente explorar novos
meios de poder e efetivas possibilidades, mas precisamos aprender e parar e
respeitar o outro como um outro, seja ele (a) a natureza ou as culturas
emergentes de pessoas e nações; e se fôssemos capazes de aprender a
experienciar o outro e os outros, enquanto outro do nosso eu, para
participar" (Gadamer apud Grün, 2007, p.167).
Em meu estágio pós-doutoral nos Estados Unidos,
pretendo desenvolver um aspecto complementar de minhas produções anteriores e,
ao mesmo tempo, também inovar através de uma nova proposição onde a Natureza já
não se apresenta sempre enquanto reciprocidade entre o mundo humano e não
humano, mas através de uma postura dominante.
ABORDAGEM
TEÓRICA
A abordagem teórica a ser utilizada será a
estética ambiental. A estética ambiental é um campo surgido a partir da
estética moderna e foi criada como uma reação á redução da apreciação da beleza
da Natureza á Filosofia da Arte. Nessa abordagem será necessário uma avaliação
preliminar do histórico filosófico de nossa relação com a Natureza. Isso dá
continuidade ao trabalho que vem sendo feito por mim e por outros pesquisadores
no Brasil e um exemplo concreto disso é o livro do qual sou co-organizador e
autor de dois capítulos que saiu recentemente pelo MEC, chamado "Pensar o
ambiente: as bases filosóficas da educação ambiental". Procuro, então,
reconstruir um pouco da trajetória do conceito de beleza e admiração pela
Natureza para contrastar com a perspectiva do racionalismo cartesiano moderno.
Se revisarmos nossas trajetórias em Educação
Ambiental muitos de nós encontrarão a beleza da Natureza como uma das
principais fontes de inspiração para a proteção ambiental e também para o
prazer. A Natureza é bela. Não há quem um dia não viu ou não sonhou com uma
bela paisagem. Mesmo aqueles que moram nos grandes centros urbanos alimentam o
sonho de encontrar o belo na Natureza seja através de fotografias, viagens ou
simplesmente em unia inspirada imaginação. Mas na verdade, a Natureza passou a
ser objeto de apreciação estética na filosofia somente recentemente.
É no séc. XVIII com as filosofias do sublime
que a beleza da Natureza ganha respeitabilidade dentro da filosofia. A estética
ambiental é ainda mais recente como campo de estudos, datando dos últimos
trinta e cinco anos. Agora temos que nos perguntar por que algo tão importante
quanto à consideração estética da Natureza em uma área tão profunda como é a
filosofia tenha ganhado tão pouca atenção. Vamos refletir um pouco sobre isso.
Os gregos acreditavam que o Cosmos, o Kalon,
a ordem das coisas era bela e se sentiam integrados nesse mundo. Sentiam-se
parte desse universo.
Os Medievais, a sua maneira, acreditavam em
uma continuidade entre o mundo físico e o mundo não humano a tal ponto que na
pintura de paisagens haviam sempre figuras humanas integradas. Na Renascença
isso muda um pouco, pois já encontramos em Albertini alguns indícios do que
iria acontecer com a frenética busca pela objetividade lançada por Descartes no
séc. XVII. Refiro-me a Albertini porque em suas telas encontramos pela primeira
vez a paisagem sem figuras humanas. Elas haviam saído da tela e se tornado
observadoras externas buscando a objetividade.
Também na Renascença, Leonardo Da Vinci, ao
inventar a técnica da perspectiva na pintura anunciava um novo mundo e
conseguia geometrizar e matematizar suas obras. A arte anuncia com pelo menos
cem anos de antecedência o que viria ocorrer na ciência moderna do séc. XVII. E
é justamente nesse momento crucial para o desenvolvimento científico e
tecnológico que começam as nossas dificuldades de apreciação estética da
Natureza. É justamente na cisão entre sujeito e objeto e Natureza e Cultura
anunciada na arte e concretizada na filosofia de Descartes que encontramos dificuldades
de apreciação estética, pois essa distinção nos afastou da Natureza e tirou o
nosso senso de pertença ao mundo. O processo de objetificação da Natureza
apontado por Grün (2006, 2007) desestruturou as possibilidades de uma
compreensão não instrumental do mundo não humano. No séc. XIX esse processo de
objetificação da Natureza foi acelerado pelo desenvolvimento das ciências
empírico-analíticas em conjunção com a Revolução Industrial.
No
séc. XVII encontramos o momento chave que desencadeou esse processo de
objetificação. Descartes busca discernir uma base sólida e estável para seus conhecimentos
e é o criador do que Richard Rorty (1979) chamou de filosofia fundacional. Diz
Descartes no séc. XVII
Comprazia-me, sobretudo, com as Matemáticas,
por causa da certeza e da evidência de suas razões; mas não percebia ainda seu
verdadeiro uso e, acreditando que serviam somente às artes mecânicas,
surpreendia-me que, embora fossem firmes e sólidos seus fundamentos nada de
mais elevado se houvesse edificado sobre eles. Do mesmo modo eu comparava os
escritos dos antigos pagãos que tratam dos costumes nos palácios imponentes e
magníficos, construídos, porém, sobre areia e lama. Erguem muito alto as
virtudes e apresentam-nos como as mais apreciáveis de todas as coisas que
existem no mundo, mas não ensinam a conhecê-las o bastante, e, com frequência o
que denominam com um nome tão belo não revela mais do que uma insensibilidade,
ou um orgulho, ou um desespero, ou um parricidio. (Descartes, 1998, p.35).
No
Discurso do Método, em 1637, Descartes realiza uma mudança que vai da história,
da cultura e da tradição ao "eu", a base de todo conhecer. E a partir
desse movimento Descartes estabelece as fundações metafísicas da modernidade.
Esse espírito de insatisfação força-o a estabelecer um novo método, no qual
possam ser eliminadas tanto a perturbadora diversidade de visões quanto o
potencial exagerado para o erro.
Descartes, com seu ataque persistente à
cultura, à diversidade e à tradição aniquila a historicidade e com isso
dificulta a compreensão das questões sociais, incluindo aí a questão da beleza
da Natureza. Outro aspecto importante para compreender a dificuldade de
apreciação da beleza da Natureza depois de Descartes reside na primazia do
intelecto sobre os sentidos. O método da dúvida propicia o trajeto mais fácil
para a mente ser levada para longe dos sentidos. Descartes duvidava de tudo: da
existência do corpo, dos sentidos, da Terra, da necessidade de uni lugar para
existir. Para Descartes o mundo físico é muito mais difícil de compreender do
que a mente. Descartes quis eliminar a Cultura e sem cultura não há apreciação
estética porque não há linguagem. Bordo (1987) denomina essa limpeza de
"parto" através do qual se afirma a masculinidade do pensamento
cartesiano em oposição aos mundos orgânico e feminino da Idade Média e do
Renascimento.
Bordo (1987) assinala ainda que a objetividade
e posterior objetificação do mundo transformou a Natureza em um objeto idílico
de análise, dissecação e controle. As Meditações Cartesianas constituem, então,
em um processo de purificação e aperfeiçoamento do intelecto e na Quarta
Meditação, Descartes afirma categoricamente que é possível pensar sem o corpo.
Já no séc. XVIII temos um período inovador em termos de considerabilidade
estética da Natureza.
Os conceitos de "desinteresse" e
"pitoresco" foram fundamentais para o desenvolvimento da apreciação
estética da Natureza na filosofia. A arte deixa de ser o único crivo através do
qual poderíamos apreciar ou compreender a beleza da Natureza. É através de Kant
que encontramos uma virada nesse sentido. Na Crítica do Juízo, Kant argumentou
que a beleza natural é superior a da arte. O aspecto revolucionário de sua
teoria consistiu no desenvolvimento do conceito de "desinteresse" na
apreciação da beleza natural, ou seja, a fruição estética descompromissada em
vez do engajamento. "A classificação de Natureza em termos do conceito de
desinteresse dissociou a apreciação estética dos interesses pessoais,
religiosos, econômicos ou utilitários, que poderiam impedir a experiência
estética” (Carlson, 2008).
Três conceitualizações fundamentais se dão a
partir do conceito de desinteresse. 1) A primeira é a beleza em relação a belos
e cultivados jardins e paisagens européias.
2)
A segunda é o sublime, em relação a elementos naturais aparentemente ameaçadores,
vastos e poderosos como, por exemplo, grandes montanhas.
3)
Mas o conceito de maior relevância para o desenvolvimento da teoria estética
foi o de pitoresco. Esse conceito realizou algumas conexões importantes entre a
beleza da Natureza e a arte. Vale lembrar que a palavra pitoresco em inglês vem
de picture-like, ou seja, como uma fotografia.
Ainda hoje essa tendência se faz presente em
muitas atividades de turismo. Já no séc. XX, talvez já indicando os caminhos
que a nossa civilização tomou, ocorreu um grande declínio do interesse da
filosofia na apreciação estética da Natureza e esta ficou mais restrita as suas
conexões com a arte. Esse foi basicamente um resultado da hegemonia e redução
da Arte à Analítica Estética. O ponto básico da Analítica Estética é que a
apreciação da Natureza seria totalmente parasitária da Arte. Somente nos
últimos trinta anos é que a considerabilidade estética da Natureza foi retomada
pela filosofia em grande medida devido à devastação ambiental e a emergência
dos movimentos ambientalistas.
A obra Verdade e Método de Gadamer publicada em 1960, embora não considere a
possibilidade de uma estética da Natureza abre novas possibilidades de compreensão da
Natureza em termos não instrumentais. Podemos fazer analogias interessantes
entre a compreensão de uma obra de Arte a as possibilidades de apreciação da beleza da
Natureza. Ao apontar o jogo como o modo
de ser da arte, Gadamer abre a possibilidade de um engajamento com a obra de
Arte em clara oposição a noção de fruição estética desinteressada. Além disso,
Gadamer nos mostra através do jogo como a dicotomia "entre sujeito e objeto não é
a única nem a maneira mais fundamental de compreender a existência humana"
(Carvalho et al., 2009, p. 101). "A preocupação quase
obsessiva do Iluminismo com a autoconsciência acabou por nos afastar de experiências que nos permitam
compreender melhor nossa existência. Johnson (2000) observa que "o projeto de uma autoconsciência separou o sujeito e o
objeto e restringiu a verdade ao
domínio exclusivamente cientifico" (Carvalho et al., 2009, p. 102).
Gadamer é um
crítico severo dessa tradição, pois ela nos alienou de verdades extracientíficas como a história e
a arte. Gadamer acredita que estamos envoltos em um tipo de alienação estética. Kant, por exemplo, não concedia a experiência
da arte o estatuto de verdade. A arte
proporcionaria um prazer desinteressado, mas não um novo conhecimento. Mas se a ciência pode reservar o
conceito de Verdade para si porque a arte não pode, pergunta Gadamer?
Se nos
deslocarmos para além do exclusivismo do método que atribuía o estatuto de
verdade à ciência, encontramos na Dialética Grega um exemplo útil para a
reflexão sobre
a alteridade da Natureza, pois o conhecimento de uma coisa não resultava de uma
atividade
metódica da consciência, mas sim de algo que a coisa mesma fez e que o pensamento sofre. Sobre isso, Gadamer (1995) nos
diz que:
"Nós
podemos ver agora que esta atividade da coisa consigo mesma no vir à fala do
significado, aponta para a estrutura universal, nomeadamente para a
natureza básica de tudo através do qual a compreensão pode ser dirigida. Ser
que pode ser compreendido é linguagem" (p.474).
Desse modo,
podemos afirmar que existe urna linguagem da Natureza e é isso que a
toma inteligível para nós. Gadamer (1995) lamenta o fato de as ciências
modernas não terem percebido isso.
“as ciências modernas não vêem a
natureza como um todo inteligível, mas como
um processo que não tem nada a ver com os seres humanos, um processo no qual a pesquisa cientifica lança uma
limitada, mas confiável luz, tomando
então possível controlar a natureza. Assim, a mente humana, procurando certeza
e proteção encontra o conhecimento científico contra a incompreensibilidade da vida, esta temível
instância" (1995, p. 475).
A
interpretação da Natureza pode ser melhor compreendida com referência a um certo número
de analogias relativas á experiência da arte e da história. Os procedimentos
objetificadores das ciências naturais procuram conhecer sem reconhecer a dimensão
linguística do conhecimento de nossa experiência, dirigindo simplesmente para a
certeza, e para uma crescente dominação do ser (Grün, 2005).
Uma
das melhores analogias para se compreender a beleza da Natureza é o conceito de
jogo. Através desse conceito podemos compreender que para que a apreciação
estética da Natureza se efetue é necessário um engajamento que desestruture a distinção
entre sujeito e objeto. Assim, a Natureza poderia se apresentar em seu verdadeiro
modo de ser que é o de auto-apresentação e não da determinação objetivista ou da
construtibilidade mecânica da mente. A compreensão da Natureza envolve respeito pela
sua outridade. A Natureza nos interpela. A compreensão só é possível quando nós
retemos o respeito pela alteridade daquilo que queremos compreender. E isso só ocorre
quando nos engajamos em um diálogo, em uma genuína troca de experiências.
Caminhando nessa direção, recentemente esbocei uma ética de parceria com a
Natureza em Educação Ambiental, baseada na humildade e no diálogo com a Natureza (Grün, 2007).
A
ética de parceria com a Natureza é possível em termos linguísticos e não dicotômicos
porque como nos diz Gadamer "a fala não pertence à esfera do eu, mas á esfera do
nós". Isso ocorre se considerarmos a Natureza como um Tu e nos dermos conta que a
realidade da linguagem viva é o diálogo e quando o diálogo "termina",
emergimos
"saciados" e transformados. Esse é um processo que envolve
transformação e, por isso, é importante para a Educação Ambiental. A diferença
básica para a postura de Descartes e das ciências que o sucederam é que a
linguagem era vista como uma produção do mundo da subjetividade. Hoje, corno sabemos,
a linguagem transcende a consciência individual. Gadamer vê uma harmonia, não na
natureza das coisas (essencialismo), mas na linguagem das coisas "que
querem ser ouvidas da forma em que as coisas trazem-se para a expressão na
linguagem".
Quando
Ficamos mais cientes de que a nossa experiência de mundo é linguística, começamos
a compreender a outridade da Natureza. O entrar na linguagem ocorre precisamente no
momento em que o elemento da aplicação apresenta-se, como sugere Gadamer
(1998) em sua leitura de Aristóteles. Precisamos estar em relação com a Natureza e
"estar em relação a algo" é, para Gadamer (1995), um fenômeno moral. Nós
participamos da Natureza e a Natureza participa de nós. É uma relação Eu-Tu. Já a
relação eu-isso não pode ser defendida como relação. Assim, podemos dizer que
pensadores como Francis Bacon, Galileu e Descartes, tiveram uma relação eu-isso com a
Natureza, pois esta foi tratada como mero objeto à disposição da razão.
Para descrever
a nossa relação com a Natureza, Martin Buber usou termos como majestosa, fascinante, e amedrontadora,
mas salientou também que nenhum adjetivo é capaz de descrever inteiramente essa relação.
Ele criticou a nossa separação da Natureza e disse acertadamente, que estamos
entrelaçados no tecido da Natureza, ela é uma parte de nós e nós
somos uma parte dela. Tanto Gadamer (1995) como Buber (1996) entendem que
a relação entre seres humanos e Natureza deveria ser mutuamente benéfica.
Já o filósofo
ambiental e alpinista Peter Reed (1989), embora reserve também um espaço
para alteridade da Natureza, vê esta sempre como dominante, Isso tem consequências
tanto éticas quanto estéticas. Em termos de estética podemos destacar a possibilidade
de auto-representação da Natureza, seu poder de sedução e convite ao engajamento,
rompendo, assim, com a frieza epistemológica cartesiana e despertando a sensibilidade
perdida pelo mundo mecânico. Mas quero ressaltar também que a ética de parceria
proposta por Reed (1989) que vê a Natureza quase sempre como parceira dominante
também tem implicações estéticas.
Atualmente,
perdemos um precioso senso de nossa insignificância diante da vastidão
infinita do Cosmos. Muitas vezes a Natureza nos convoca a lembrarmo-nos disso. Para
Peter Reed, os desastres "naturais" corno são chamados, têm o
potencial de servir de uma espécie de aprendizagem a partir da qual podemos
mudar nossas atitudes, por mais vagaroso que possa parecer esse processo. Eu
descrevo essa possível estética como uma espécie de respeito combinado com
medo e desejo. E as considerações de Gadamer sobre a capacidade da obra de arte de
comunicar a si mesma podem ser bastante úteis para compreender a minha proposição
estética da Natureza como parceira dominante.
Gadamer
(2000) diz que "Quer nós chamemos o trabalho de arte uma criação inconsciente do gênio, ou
consideremos a inexaustabilidade de cada criação artística do ponto de vista do observador, a consciência
estética pode apelar para o fato de o trabalho
de arte comunicar a si mesmo" (p.181). Poderíamos nos perguntar agora se a
Natureza comunica a si mesma. Minha resposta é sim, só que nós não nos
aprimoramos ainda na hermenêutica da escuta
e ainda não abrimos os devidos canais de comunicação com o mundo
não-humano.
Para Gadamer (2000) a
questão fundamental de uma obra de Arte é se ela tem algo a nos dizer.
"A
intimidade com que o trabalho de arte nos toca é ao mesmo tempo, uma moda enigmática, um devaneio e
uma demolição do familiar. Não é apenas a tua arte revelada em um alegre e assustador choque, mas também diz para nós: Tu precisas alterar a tua vida"
(Gadamer, 2000, p.186).
E
isso é fundamental para a Educação Ambiental. Por isso podemos dizer que a Natureza é o
outro que nos convoca em todo seu poder de sedução e beleza, mas que tudo isso
hoje é mesclado com um profundo sentimento de respeito, medo e desejo. O medo e o
desejo não são mais elementos separados de nossa admiração pela Natureza.
A nossa
relação ideal com a Natureza é de reciprocidade como assinalam Gadamer, Buber e Grün
(2007), mas a Natureza tem se apresentado também como dominante. Com a força, o vigor e o impulso
extraordinário que ela tem. Já longe do rigor analítico que a derrubou. Esse poder e força podem ter um papel
educativo-ético-estético importante,
pois nos descentra do desconcertante antropocentrismo em que nos encontramos e nos faz cientes diante de nossa
insignificância. Não se trata da insignificância das pessoas. As pessoas
são importantes. É sim, a nossa insignificância diante da Natureza, da
Terra em sua jornada de formação desde os tempos imemoráveis antes da presença da vida no planeta.
É
nesse sentido que precisamos respeitar profundamente o que existe, pois isso não foi
feito por nós e precisamos nos lembrar disso, ainda que isso nos leve muitas vezes
a sentir medo. Mas não quero dizer com isso que as catástrofes naturais são bonitas. Nem
mesmo que os terremotos são belos como apregoava John Muir. Mas que o reconhecimento
de nossa insignificância perante o Cosmos e a força da Natureza é talvez o mais
belo caminho que uma estética da Educação Ambiental possa tornar para que
sejamos reconduzidos a uma hermenêutica da escuta da Natureza na qual possamos
alcançar um mundo melhor onde o Kalon, a
ordem
das coisas belas, como chamavam os gregos, seja mais respeitada.
METODOLOGIA
A metodologia
a ser utilizada é a hermenêutica. A hermenêutica é quase tão antiga quanto
a filosofia e tem como marco referencial no séc. XX o trabalho de Gadamer. Mas
para compreendermos porque essa metodologia é a mais apropriada para o bom andamento
da pesquisa é necessário que nos remetamos aos antecedentes históricos da
hermenêutica filosófica. É através da exploração do que significa a circularidade
da compreensão que podemos fazer isso. Vejamos isso mais de perto. Para Gadamer (1988)
o movimento da compreensão sempre vai do todo para as partes e das partes para o
todo. A ausência desse círculo determina uma falha da compreensão. A regra
hermenêutica segundo a qual a compreensão se move do todo para as partes e das partes para o
todo, na verdade, já se faz presente na retórica grega antiga. Mas para compreendermos
essa ideia em termos do que ela representa enquanto abordagem metodológica
podemos começar nossa discussão com Schleiermacher no séc. XIX.
Schleiermacher
(1768-1834) acreditava que a hermenêutica fosse urna arte de mover-se
dentro do pensamento de outra pessoa e compreender aquele pensamento a partir
da perspectiva de outra pessoa (Johnson, 2000). Tratava-se de compreender a intenção do
autor. Schleiermacher já percebia a impossibilidade de um ponto arquimédico
da consciência para nos interpretarmos c isso já representava urna derrocada das
pretensões últimas de fundamentação metafísica. O que é para ser compreendido a
partir de Schleiermacher já ao são as palavras exatas ou objetos, mas a individualidade
(interioridade) do autor. E essa individualidade é uma pequena parte de uma
manifestação da vida universal. Assim, todos nós carregaríamos urna parte de
cada um de
nós em si mesmo.
O método é comparativo
e divinatório. Ou seja, ele compara o que é comum entre os interlocutores e faz uso
do método divinatório (teológico) com o qual tenta subsumir a individualidade do
conjunto da humanidade. "Compreender é uma operação essencialmente referencial;
compreendemos algo quando o comparamos com algo que já conhecemos" (Palmer, s.d.,
p.93). Seu método foi extremamente ousado para sua época, mas logo foi superado por
apresentar uma concepção de ciências humanas por demais presa à teologia. Schleiermacher costumava
dizer que seu objetivo com a hermenêutica
era compreender o autor melhor do que ele compreendeu a si mesmo com isso, Schleiermacher entende a compreensão como um
movimento circular.
Dilthey
(1833-1911) aperfeiçoa e retoma de Sehleiermacher a noção de circularidade
da compreensão. Ele também nutria um grande otimismo em relação ao progresso da
cultura científica. A escola histórica de Dilthey reclamava para si o conceito de
ciência e, sobretudo, reivindicava desse conceito os conceitos de método e objetividade,
pertencentes à ciência moderna. Ele queria pensar esses conceitos de objetividade e
método para a vida histórica. Gadamer situa Dilthey não como um positivista,
mas como um filósofo que ocupa um lugar entre a teoria do conhecimento e o legado da
filosofia romântico-idealista que buscava a aproximação entre vida e história
(Gadamer, 1995). Essas eram exigências metodológicas do historicismo. Tratava-se de
legitimar as ciências do espírito (históricas). Dilthey queria proteger a compreensão
histórica da arbitrariedade do subjetivismo. Ele parece tentar conjugar a ciência com
a vida histórica, acreditando que a hermenêutica nos dá a possibilidade de estabelecer
uma ciência da compreensão que pode fornecer uma fundamentação metodológica
para as ciências humanas, discernindo explicação de compreensão. A explicação
seria o procedimento análogo ao das ciências naturais, ao passo que a compreensão
contemplaria o indivíduo em sua interioridade. Dilthey, tal como Schleiermacher,
entende a compreensão como um movimento circular. Mas Dilthey ainda mantém a
estrutura circular da compreensão confinada dentro de uma relação formal entre o todo e as partes.
É
somente com o jovem Heidegger (1915-1923) que o circulo da compreensão deixa de ser
um círculo formal e vicioso. Seguindo Heidegger, Gadamer (1983) buscará se
desviar do conceito de “circulo vicioso”. Ele mostrará que o círculo hermenêutico
não é um círculo formal, mas um círculo que descreve a compreensão como um jogo
interno entre a tradição e o intérprete" (Grün, 2007, p.100-101)-Seguindo em
sua reflexão, Grün (2007) afirma que "compreender não mais significa
compreender uma causa, pois, "após Heidegger
(1999) emerge uma valorização ontológica do conhecimento histórico na estrutura da
compreensão histórica da existência humana" (p.101).
Para Gadamer
(1998), (...) essa nova estrutura projetiva do estar ai endossa o conhecimento histórico com
um novo status e permite que os preconceitos
agora tenham um papel relevante referente à noção de ciência. Esses desenvolvimentos
da hermenêutica proporcionaram uma nova compreensão da ciência, na qual esta
estaria sempre sujeita a novas redefinições. "Se não me equivoco, a solidariedade
da ciência se baseia em primeiro lugar na correspondente limitação do conhecido e
na renovabilidade de todo conhecimento científico" (Gadamer, 1990, p.97). Heidegger
(1999) nos mostra que o circulo da compreensão tem uma significância ontológica
positiva. E o resultado disso é que a interpretação não pode ser arbitrária, pois qualquer
compreensão será sempre uma projeção que poderá ser corrigida pelo contato com o
outro. Nós sempre temos expectativas na leitura de um texto e projetamos
significado em um todo. "Por outro lado é apenas porque alguém de inicio
lê o texto com certas expectativas de um significado definido que o significado
inicial se torna
aparente" (Gadamer, 1988, p.71). É através dessas constantes projeções que
vamos
fazendo as nossas revisões de significado na ciência. Para que estas constantes
revisões ocorram é necessária uma abertura ao que o outro, a Natureza, quer
dizer e a eliminação
de todo pressuposto de neutralidade.
A questão da
cientificidade na hermenêutica filosófica ganha urna outra dimensão ao nos
darmos conta que a consciência histórica não aceita autoridades
inquestionáveis no que se refere ao status
calo do fazer científico. A tarefa da hermenêutica
filosófica é não só explicitar os preconceitos e pré-concepções que originam o
fazer cientifico. Mas sua tarefa última, através da consciência histórica, é saber
discernir os falsos preconceitos daqueles verdadeiros. É justamente nessa humildade
filosófica — saber reconhecer que o outro, a Natureza, pode estar correto e nos
modificarmos a partir disso — é que consiste a metodologia adequada para a transformação do
eu antropocêntrico cartesiano que ainda nos leva a uma postura objetificadora e nos
impede de apreciar a beleza da Natureza
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