Ao longo dos últimos séculos, temos destruído a natureza, a nós mesmos e ao outro. A pergunta que devemos nos fazer é se afinal, somos pessoas experientes. Estamos aprendendo algo com nossas experiências?
Muito pouco, diz o filósofo Mauro Grün.
Na verdade, Bacon caracterizou seu método como experimental. Além disso, tal definição não se refere simplesmente aos procedimentos técnicos adotados pelos cientistas, mas também à forma única na qual a mente científica deve evitar ser distraída em generalizações apressadas. Hoje sabemos, como diz Gadamer, que a metodologia de Bacon era muito vaga e geral, e conhecemos também os resultados negativos que ela produziu em sua aplicação à Natureza.
Muito pouco, diz o filósofo Mauro Grün.
Na verdade, Bacon caracterizou seu método como experimental. Além disso, tal definição não se refere simplesmente aos procedimentos técnicos adotados pelos cientistas, mas também à forma única na qual a mente científica deve evitar ser distraída em generalizações apressadas. Hoje sabemos, como diz Gadamer, que a metodologia de Bacon era muito vaga e geral, e conhecemos também os resultados negativos que ela produziu em sua aplicação à Natureza.
Entretanto, o
objetivo declarado por Bacon de dominar a Natureza para controlá-la era bem
mais o lado programático de seu trabalho do que realmente o desenvolvimento de
um método científico. Gadamer caracterizou como unilateral a visão de que a
experiência deveria ser avaliada apenas teleologicamente e simplesmente a ponto
de poder levar ao conhecimento. Pretendo argumentar que não devemos confiar em
tais modelos de experiência, pois o caráter fundamental da experiência repousa
em sua alteridade, considerando nossas próprias experiências, em vez de simplesmente
como forma de garantir que os erros sejam evitados quando corrigidos.
Gadamer
propõe, portanto, que é importante compreender o nascimento da experiência
enquanto evento sobre o qual ninguém exerce controle. A experiência não é
determinada por esta ou aquela observação, mas é coordenada de uma forma que,
em última análise, é inteligível. Pensar na experiência como essencialmente
ligada à ciência pareceria, então, um erro. Pensar na experiência simplesmente
em termos de seus resultados é omitir o fato de que ela é essencialmente um
processo. Gadamer propõe que há três modos de compreender a experiência: 1)
Primeiro, devemos considerar as experiências como confirmação de nossas
próprias expectativas. 2) Segundo, precisamos considerar nossas próprias
experiências. Foi Hegel, no entanto, que desenvolveu o elemento dialético da
experiência. Em seu trabalho, a experiência ganhou uma dimensão diferente. Para
ele, a verdadeira experiência é a experiência da consciência. A consciência
emerge transformada do encontro com o fenômeno, precisamente como resultado
desse encontro. Esse processo endossa a consciência com novos horizontes para
futuras experiências - uma experiência que determinará a natureza de futuras
experiências. Por meio da própria conversão em novos horizontes, a consciência
aprende algo e o processo é, então, uma forma de educação. Mas, se para Hegel
esse novo conhecimento é absoluto, esse não é o caso no trabalho de Gadamer
(1995), que defende que a dialética da experiência representa uma oportunidade
para novas experiências. O indivíduo experiente, dessa forma, não é o que
acumulou experiências, mas o que está sempre aberto para novas experiências.
Nesse contexto, esse estar aberto tem a ver com a disposição de receber tudo
que nos confronta em sua capacidade de Outro, mas não no avanço dialético
articulado por Hegel. A aquisição da experiência pode ser dolorosa, pois nos
lembrará que não dominamos nosso próprio destino e que somos submetidos às
contingências da existência humana. As experiências com frequência nos
confrontarão com os equívocos de nossas próprias expectativas. A verdadeira
experiência é desse modo, a experiência de nossa própria finitude. Risser
(1997, p. 91) vê aí a versão que Gadamer tem da humildade socrática:
A genuína
experiência, assim como a sabedoria socrática, pede-nos que recuperemos o
espaço que separa o humano do divino na tentativa de não apenas reconhecer o
espaço, mas também preservá-lo. E isto significa que no estar aberto para novas
experiências, o dogmatismo alcança suas fronteiras absolutas.
Neste ponto,
genuína é a experiência de nossa própria historicidade. Não conseguimos passar
pela mesma experiência duas vezes. Uma experiência que é repetida não é mais a
mesma experiência. É, então, uma nova experiência, não mais a mesma coisa, mas
algo novo e inesperado. "O indivíduo fica ciente de sua experiência; ele é
experiente. Ele adquiriu um novo horizonte em que algo pode se tornar uma nova
experiência para ele" (Gadamer 1995, p. 354). Hegel afirmou que a
verdadeira experiência tem a estrutura de um inverso da consciência e como tal
constitui um movimento dialético.
A experiência
hermenêutica, no entanto, não é vista como ciência. Ela existe sempre em
oposição ao aprendizado e à instrução, que são o resultado de conhecimento
teórico e prático. A verdadeira natureza da experiência leva sempre a novas
experiências. "É por isso que a pessoa que é chamada experiente é assim não
apenas através de experiências, mas também está aberta a novas
experiências" (Gadamer 1995, p. 355). A pessoa experiente, portanto, não é
aquela que sabe tudo, mas aquela que radicalmente resiste a todos os dogmas.
Vamos, então,
examinar como Gadamer concebe nossa experiência com o Tu. O Tu não é objeto,
pois existe em relação a nós. "Estar em relação a algo" é, para
Gadamer (1995), um fenômeno moral. De modo semelhante, a aquisição de
conhecimento através da experiência do encontro com o Outro também é um fenômeno
moral. O conhecimento sobre o Outro, em contraste com a probabilidade de levar
à crença de que possamos prever suas ações, é puramente conhecimento sobre si
mesmo. Qualquer um que compreenda a tradição dessa forma a objetifica, levando
o eu a, metodologicamente, excluir tudo o que for subjetivo.
Uma segunda
forma através da qual o Tu pode ser compreendido é como pessoa, embora mesmo
nesta instância pode ser ainda uma forma de autorrelação. Para todo argumento
há um contra-argumento. É por isso que é possível para cada parte de um
relacionamento de forma reflexiva sobrepujar o outro. (Gadamer 1995, p. 359)
Embora até
certo ponto se busque conhecer o Outro melhor do que a si mesmo, o Tu é
compreendido mas simultaneamente cooptado pela posição do primeiro
interlocutor. Isso pode, então, levar ao controle e à dominação de um sobre o
Outro. Gadamer (idem) enfatiza que, ao alegar que se conhece o Outro, roubam-se
suas alegações de legitimidade - conhecemos isso na relação entre professor e
aluno, na qual fica clara a dialética do Eu-Tu.
A pessoa
experiente sabe que não domina o tempo nem o futuro e que seus planos são
necessariamente limitados e contingentes. A pessoa experiente sabe também que
todos os planos e expectativas dos seres finitos inevitavelmente também serão
finitos e limitados. Essa é nossa experiência mais genuína, pois é também a
experiência de nossa própria historicidade. Esse é o terceiro tipo de
experiência do qual nos fala Gadamer.
A experiência
hermenêutica é tradição, e a tradição não é um processo simples que a
experiência nos ensina. Tradição é linguagem e se expressa como um Tu. Isso não
é dizer que o que é experienciado na tradição seja a opinião de outra pessoa,
mas que a tradição é parte genuína de um diálogo. Portanto, pertencemos à tradição
da mesma forma que pertencemos ao Tu. O Tu está numa relação conosco. Essa
seria precisamente a estrutura a ser observada numa relação ecologicamente
ética entre os seres humanos e a Natureza, uma ética de parceria. Participamos
da Natureza e a Natureza participa de nós.
"Na
experiência hermenêutica a consciência histórica constitui-se paralela à
experiência do Tu, devido ao que ela sabe sobre a outridade do Outro. A
consciência histórica conhece a outridade do passado, assim como uma
compreensão do Tu conhece o Tu como uma pessoa" (Gadamer 1995, p. 360). O
indivíduo que não reconhece que é condicionado pelas preconcepções não verá o
que se manifesta através de sua própria luz. Este é o modelo da relação entre o
Eu e o Tu. "A pessoa que reflete sobre si fora da mutualidade de tal
relação muda esta relação e desfaz seus vínculos morais" (ibidem).
O estar aberto
à tradição constitui, desse modo, o mais elevado tipo de experiência
hermenêutica. Vimos que, na experiência humana, é importante considerar o Tu
verdadeiramente como um tu e permitir que realmente nos conte ou ensine alguma
coisa. Sem esse estar aberto de uma pessoa para outra não há vínculo algum
entre elas. Esse estar aberto implica o reconhecimento de que aceitaremos
algumas coisas que possam não nos ser favoráveis. Esse estar aberto à tradição
está crucialmente ligado à experiência que o Eu tenha do Tu. Esse estar aberto
deve caracterizar a atitude tanto do falante quanto do que apreende a mensagem
falada. Em última análise, a hermenêutica é precisamente o que distingue a
pessoa experiente daquela presa a dogmas.
Reconhecer
isso para "deixar falar", seja um indivíduo, a Natureza ou a forma
mais ampla de tradição, constitui, portanto, uma das lições mais importantes da
hermenêutica. Esse processo é semelhante ao escutar socrático ao qual me referi
em capítulos anteriores: deixar falar, deixar estar. Ainda na juventude,
Gadamer (2000, p. 390) demonstrou a irredutibilidade do Outro numa situação de
Amor:
Aquele que ama
esquece a si mesmo põe-se de fora da própria existência, vive por assim dizer
no outro. Com esta primeira expressão Hegel afronta já o seu tema mais próprio,
porque nesta analogia de razão e amor estão intimamente implícitas a coisa, a
sua concordância, mas ainda a sua diferenciação. A universalidade do amor não é
a universalidade da razão. Hegel não é Kant. No amor há um Eu e um Tu, ainda
que estes possam se dar um ao outro com dedicação. O amor é a superação da
estranheza entre o Eu e o Tu, uma estranheza que existe sempre e que precisa
existir, para que o amor possa estar vivo. Na razão, ao contrário, o Eu e o Tu
são intercambiáveis e representam a mesma coisa. E, além disso: exatamente por
isto o amor não é uma abstração, mas uma concreta universalidade, isto é, não é
isto que todos são (como seres racionais), mas como o que são o Eu e o Tu e, em
verdade, de tal modo que isto não é nem o Eu nem o Tu — mas o Deus que aparece,
isto é, o espírito comum, que é mais que o saber do Eu e o saber do Tu.
Almeida (apud
Almeida, Flickinger e Rohden 2000) argumenta que o amor ocorre nessa passagem
como causa universal que viabiliza o encontro entre o Eu e o Tu, mas também
como imposição que inviabiliza a redução de um para o outro. Na consciência
histórica, ocorre algo muito semelhante: outra vez, o Outro é irredutível ao
Eu. Como observa Almeida,
(...) a
consciência histórica paralisa a pretensão da filosofia de conhecer
"verdades eternas" e de alcançar o olhar que abarca o absoluto. Em
vez disso, lembra que filosofar é empreender uma tarefa sem fim e buscar o
saber sempre; daí por que é tão produtiva a mística do amor, pois assim como a
destruição do outro numa relação amorosa tem como consequência a destruição do
próprio amor, do mesmo modo, a destruição da diferença resulta na morte do
espírito histórico. (Idem, p. 101)
Até então, tenho
enfatizado a forma de a alteridade ou outridade constituir um traço fundamental
de todas as experiências hermenêuticas genuínas. É o ouvir socrático sobre o
qual tratei em capítulos anteriores: deixar falar, deixar estar, deixar a
Natureza ser.
O teólogo e
filósofo Martin Buber (1996) compreendeu muito bem que o que estava em jogo cm
tal postura era exatamente o respeito pela outridade. Em seu trabalho, Gadamer
(1995) seguiu os passos de Buber para desenvolver seu próprio conceito de
alteridade. Buber foi o pioneiro de uma longa e fértil linhagem de pensadores
do século XX que se preocuparam com a alteridade. Entre outros poderíamos citar
Levinas, Gadamer e Derrida. Buber de fato estabeleceu a visão de que, enquanto
há urna relação instrumental entre Eu-isso, há uma relação entre Eu e Tu.
Apenas esta pode ser definida como uma relação. Eu-isso não pode se constituir
cm uma relação. Assim, podemos dizer que pensadores como Bacon, Galileu e
Descartes, cujos trabalhos foram tratados nos capítulos 1, 2 e 3, meramente
lidaram com uma relação instrumental do tipo Eu-isso. Nos trabalhos desses
filósofos, a Natureza é tratada como objeto, como um Isso. Está claro que um
Isso desse tipo não falará, pois é mudo. Para ocorrer uma relação, deve haver
respeito pela outridade. Ninguém compreendeu essa questão tão bem como Buber.
Já em 1923 ele falava na necessidade de respeitar o ser da Natureza. Em Eu e Tu, Buber escreve:
Eu considero
uma árvore.
Posso
apreendê-la como uma imagem. Coluna rígida sob o impacto da luz, ou o verdor
resplandecente repleto de suavidade pelo azul prateado que lhe serve de fundo.
Posso senti-la
como movimento; filamento fluente de vasos unidos a um núcleo palpitante,
sucção de raízes, respiração das folhas, permuta incessante de terra e ar, e
mesmo o próprio desenvolvimento obscuro. Eu posso classificá-la numa espécie e
observá-la como exemplar de um tipo de estrutura e vida.
Eu posso
dominar tão radicalmente sua presença e sua forma que não reconheço mais nela
senão a expressão de uma lei - de leis segundo as quais um contínuo conflito de
forças é sempre solucionado ou de leis que regem a composição das substâncias.
Eu posso
volatilizá-la e eternizá-la, tomando-a um número, uma mera relação numérica.
A árvore permanece, em todas
essas perspectivas, o meu objeto tem seu espaço e seu tempo, mantém sua
natureza e sua composição. Entretanto pode acontecer que simultaneamente, por
vontade própria e por uma graça, ao observar a árvore, eu seja levado a entrar
em relação com ela; ela já não é mais um ISSO. A força de sua exclusividade
apoderou-se de mim. (1996, pp. 7-8)
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