ÉTICA DE PARCERIA COM A NATUREZA

on quarta-feira, 30 de julho de 2014


É hora de analisarmos a relevância de tudo que eu tenho dito sobre a outridade da Natureza e a alteridade do Outro num sentido geral e relacioná-lo com o mundo contemporâneo. Em especial é hora de ponderarmos sobre sua relação com nossos medos, esperanças e expectativas. Comecei este livro discutindo o ataque à tradição feito por Bacon, Galileu e Descartes. Isso tem sido visto como algo ligado a um silenciar da Natureza em várias áreas do conhecimento, em consequência de um processo objetificador que a anula e transforma em mero objeto à mercê da razão. Agora, ao final desta jornada, proponho uma conclusão baseada na postura ético-política da outridade da Natureza, como a dimensão ética da educação ambiental.

Gadamer (1992) assevera que estamos atualmente passando por um período de séria crise, uma crise que traz consigo as sementes para um suicídio coletivo da civilização, particularmente pelo alarmante arsenal de armas de destruição em massa agora existente. Mais alarmante para Gadamer, no entanto, é a crise ecológica que ele identifica no mundo de hoje. Especificamente, o filósofo alemão destaca a destruição, a exaustão e a desolação do planeta Terra. As condições tanto da vida humana quanto não-humana estão ameaçadas. Gadamer vê poucas alternativas para nós, habitantes da Terra.  Hoje os fundamentos da vida político-econômica exigem cada vez mais reconsiderações e idealmente também algumas mudanças radicais. A questão de qual papel a filosofia deveria desempenhar nesse processo precisa ser colocada. Para Gadamer, essa questão é dificultada pelo fato de a cultura e o conhecimento científico europeus terem contribuído grandemente para a perigosa situação em que nos encontramos.

O que hoje conhecemos como ciência é uma criação moderna. Está claro que o termo possuía conotação radicalmente diferente tanto no mundo grego quanto no mundo cristão da Idade Média. No século XVII, no entanto, ocorreu uma mudança decisiva. Como já argumentei, os trabalhos de Bacon, Descartes e Galileu nos séculos XVI e XVII estabeleceram as condições para o esquecimento da tradição-linguagem. Com Bacon, no século XVII, entramos num processo de presentificação do pensamento. Todo o conhecimento pré-século XVI foi descartado como irrelevante. O pensamento dos medievais e gregos foi completamente desacreditado. O início da modernidade é, então, caracterizado por uma Pathos des Neuen (uma paixão pelo novo). Em Bacon, já encontramos o desprezo pela tradição que nos constitui. No século XVII Galileu propõe o Universo em linguagem escrita e matemática. Segundo Murgerauer (1994), isso levou à perda da palavra falada, pois o significado não está mais localizado na palavra falada, nem, é claro, na escrita, mas na explicação que reduziu todos os fenômenos a conceitos explicados matematicamente. Com Descartes, presenciamos o surgimento da modernidade científica e a instauração de um conhecimento que se pressuponha puro e objetivo, livre de pré-concepções. Tal processo criou também uma nova posição para os seres humanos, caracterizada por sua capacidade de dominar e controlar a Natureza.

O desafio que a humanidade tem hoje é se preparar para as tarefas que lhe chegam rapidamente. No cerne da questão, tenho argumentado, está a necessidade de realizar uma profunda revisão da criação moderna que chamamos de ciência. Um Gadamer (1992) preocupado escreve que não tem certeza se conseguiremos enfrentar as catástrofes ecológicas cada vez maiores e os crescentes níveis de pobreza. Ele observa também que não sabe se seremos capazes de conter a vontade unidimensional que impele à autodestruição. Finalmente, Gadamer (1992) coloca de forma nova a questão quanto ao papel da filosofia no todo do processo. Como não é um pensador messiânico, ele não nos oferece soluções prontas nem receitas para as soluções. O que ele faz é sugerir algumas formas para reconsiderarmos nossa própria compreensão do mundo. Um dos conceitos que ele propõe é o do mundo da vida (Lebenswelt), primeiramente usado por Husserl no início do século XX. Muitos outros, como Heidegger e os pragmatistas americanos, já haviam percebido o potencial do conceito (Gadamer 1992). Pois o conceito tornou possível o que hoje se denomina práxis, embora não meramente no sentido de uma aplicação da teoria.  

Esse ponto de vista refere-se unicamente a uma compreensão moderna da práxis. Em vez disso, a práxis proposta no trabalho de Gadamer refere-se mais estritamente à conotação que o termo teve no pensamento grego, isto é, o de "inação". A práxis, no mundo grego, subentendia a pergunta: "como a vida tem te tratado?". Gadamer (1992, p. 230) escreve que, em tal práxis, "está claramente uma nova proximidade à totalidade de nossa posição no mundo enquanto humanos. A temporalidade, a finitude, o planejamento e a projeção, a lembrança, o esquecimento e o ser esquecido estão intimamente ligados a isto". Em outras palavras, Gadamer está primordialmente preocupado com a historicidade. Desenvolvemos, então, uma consciência da outridade do passado, uma vez que a consciência histórica sempre nos lembra dos perigos do dogmatismo. Embora gostemos de pensar que tentamos e podemos ser objetivos, não podemos esquecer que, como seres humanos, "somos por natureza apanhados de diversas formas em armadilhas, e isso significa que estamos total e completamente incrustados na práxis" (Gadamer 1992, p. 231). A noção de Natureza como objeto de estudo da razão não deriva da práxis, mas é criada no âmbito da ciência moderna. Essa ciência é capaz de nos fazer voltar ao mundo da práxis?, pergunta Gadamer.

Porque agora ela concerne a toda a existência do humano na natureza, e concerne à tarefa de controlar os desenvolvimentos de nossas capacidades e o domínio que tenhamos sobre as forças naturais de tal forma que a natureza não seja destruída e devastada por nós, mas preservada junto com nossa existência nesta terra. A natureza não pode mais ser vista como mero objeto de exploração, precisa ser experienciada como parceira em todos os seus aspectos, mas isso significa que precisa ser o outro com o qual vivemos juntos. (Gadamer 1992, p. 232; grifo meu)

Esta, então, é uma ciência em que a Natureza não é dominada nem conquistada, mas vista e experienciada como parceira num diálogo mutuamente benéfico. A hermenêutica filosófica está no cerne de um processo que nos levou a pensar nestes termos e a questionar a postura epistemológica que define a ciência como forma de controlar e dominar as coisas. Gadamer, ao contrário, fala numa filosofia e numa ciência capazes de reconhecer a alteridade do Outro. "Precisamos aprender a respeitar os outros e a outridade. Isto significa que precisamos aprender que podemos estar errados. Precisamos aprender a perder o jogo — isso começa com dois anos de idade ou mesmo antes" (1992, p. 233).

As consequências de tal pensamento são de enorme significância, pois ele significa que precisamos aprender a estar com outros enquanto seu outro; precisamos aprender a viver com outros enquanto outros de nós mesmos. Importante é que tal processo é relevante para todos os contextos, sejam os menores, como os currículos de escolas e universidades, sejam os contextos macropolíticos, como as nações e os estados políticos. Como nos lembra Gadamer (idem, p. 235), não precisamos temer o significado da outridade,

(...) pois seu reconhecimento e aceitação é precisamente a forma de reconhecer e aceitar nossos próprios eus, e de um meio de genuinamente encontrar o outro na linguagem, religião, arte, lei e história. E isso constitui uma verdadeira forma de comunalidade. Quando não se está preocupado com aprender a controlar algo, eternamente se está aprendendo através das experiências de nossos próprios preconceitos, a outridade do outro em seu outro ser. Participar com o outro e ser parte do outro em seu outro ser, Participar com o outro e ser parte do outro é o mais e o melhor pelo que podemos lutar e realizar.

A postura acima constitui o ponto central do que Gadamer formula como a postura ético-política que pode nos levar a uma ética do parceria com a Natureza em educação ambiental. A educação ambiental, por sua vez, constitui apenas um dos vários modos de tratar das consequências da  vida contemporânea. O respeito pela outridade da Natureza implícito em tal processo poderia, por sua vez, despertar novas formas de solidariedade respeito pela outridade do Outro. Quero propor que é precisamente para essa postura ético-política que uma educação ambiental efetiva e radical precisa se voltar se quiser se libertar dos limites do pensamento cartesiano.

Poderíamos talvez sobreviver como humanidade se fôssemos capazes de aprender que não podemos simplesmente explorar nossos meios de poder e efetivas possibilidades, mas precisamos aprender a parar e respeitar o outro como um outro, seja ele(a) a natureza ou as culturas emergentes de pessoas e nações; e se fôssemos capazes de aprender a experienciar o outro e os outros, enquanto outro do nosso eu, para participar um com o outro. (Gadamer 1992, pp. 235-236)

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