A respiração da Natureza

on sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
A natureza fala? Eis uma questão intrigante.

Em outra postagem sobre  Ética, Estética e Educação Ambiental, (Veja no link: Ética e Estética e Educação Ambiental) já abordei essa questão: 

"Poderíamos nos perguntar agora se a natureza se comunica a si mesmo. Minha resposta é sim, só que não nos aprimoramos ainda na hermenêutica da escuta e ainda não abrimos os devidos canais de comunicação com o mundo não humano."  

Mauro Grün - Filósofo e Escritor.Doutor em Ética e Educação Ambiental pela University of Western Australia.


A hermenêutica é capaz de trazer uma Natureza alienada para mais perto de nós sem lhe privar de sua outridade. Essa hermenêutica é, então, a da voz, uma vez que o significado surge numa linguagem viva: "Linguagem, para mim, é sempre simplesmente aquela que usamos com os outros e para os outros" (Gadamer 1989c, p. 98). Para compreendermos a hermenêutica como voz precisaremos também compreender as declarações de Sócrates quanto ao status da escrita. No Fedro, Sócrates claramente considera o status da linguagem falada superior ao da palavra escrita. Ademais, é significativo que o próprio Gadamer seja profundamente influenciado pelos pontos de vista de Sócrates. Para Gadamer, no entanto, a escrita em si não deixa de ser uma voz, postura esta que fez Derrida acusar a hermenêutica de fonocentrista.

Derrida argumenta que Platão realmente privilegiava a palavra falada. No Fedro, Platão chega a ponto de dizer que o discurso escrito deveria ser denominado como um tipo de imagem, e que o discurso realmente importante é o da "palavra viva e respirada". Risser (1997) leva a sério a asserção de Platão e faz uma análise da voz na respiração. Respondendo à preferência de Sócrates pelo discurso, o Fedro diz que ele não é um discurso morto, mas a palavra viva e respirada. É uma condição que permite que estejamos vivos. O significado de ser deve ser encontrado na experiência da voz.

A voz da respiração

Risser (1997) observa que, na tradição oral grega, desde os dias de Homero, "dizer uma palavra é respirar, proferi-la para ser ouvida quando os ouvidos da pessoa a respiram. Mas a palavra é em si respiração, isto é, o ser da vida, é de espírito, mente, inteligência" (p. I76). Ele continua: "Para Homero, palavra (ëpos) não significa apenas palavra, aquilo que poderia possivelmente ter margem, mas inclui os significados 'fala', 'conto', ‘canção’ ou poesia 'épica' como um todo" (p. I77). É mais ou menos isso que Gadamer quer dizer quando propõe que urna palavra sempre se refere a uma realidade maior e múltipla.

Para Gadamer ( I 995), a voz é a palavra interior. Nesse ponto, a compreensão só pode ser possível quando emerge a voz interior. A voz interior tem o caráter de um evento. "Isto é a palavra que diz algo além de suas partes gramaticais. É a palavra que ocorre na escrita quando é lida a palavra. É a palavra da respiração que é ouvida pelo ouvido interno" (Risser 1997, p. 176).

A voz ocorre quando a palavra acha seu lugar. Na hermenêutica, a palavra assume seu lugar na investigação dialógica. O fato de a palavra ser da respiração significa que um elemento de continuidade é inevitável em toda a nossa fala. A voz garante que a palavra jamais seja única, pois sempre se refere a uma unidade múltipla. A voz persiste tanto na escrita quanto na fala. Risser (ideM) salienta que, quando Gadamer diz que é necessário separar o significado da palavra de seu sentido gramatical, "ele está se opondo à remoção da voz da escrita. Para Gadamer a situação comunicativa demanda que a gramatologia não exclua a voz" (p. 179).

Derrida (1989) acredita que, nessa tentativa de compreender o estranho — outras culturas, mundos da vida ou a Natureza —, a diferença será assimilada e absorvida pelo ato da compreensão. Mas não é isso que acontece, pois, como enfatiza Gadamer (1995), a hermenêutica luta para se reconhecer no Outro "e encontrar um lar no estrangeiro - é este o movimento básico do espírito cujo ser consiste nesta volta para si mesmo a partir da outridade" (p. 14). Acredito que esse princípio é mais do que suficiente para nos guiar em nossa relação com a Natureza. Em nosso encontro com a outridade da Natureza, estaríamos voltando para nós mesmos como indivíduos modificados, com a disposição de repensar as preconcepções norteadoras de um modo objetificante e antropocêntrico de ser.

Concluindo, poderíamos, portanto, argumentar que Derrida simplesmente não compreendeu a hermenêutica filosófica, pois esta não constitui qualquer tentativa de controle da Natureza. Em vez disso, possibilita que falemos em termos que revelem uma cognição da outridade da Natureza, a outridade do Outro e da diferença.

Trecho do meu livro Em busca da Dimensão Ética da Educação Ambiental.

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