Porque não sou mais homem

on sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
“O homem está há muito tempo na administração do planeta. As coisas não estão bem. Falhamos”, diz o filósofo Mauro Grün.

Ecofeminismo
Mauro Grun

Santos (2005) observa que o ambientalismo e o feminismo são os maiores e mais fortes movimentos sociais globalizados Desde o início dos anos de 1970, Rosemary Radford Ruether tem defendido que o ambiente é um assunto feminista. A asserção básica do ecofeminismo é a de que existem visões de mundo e práticas que são baseadas nos modelos de dominação dos homens sobre as mulheres. O argumento de Ruether (1975) é o de que não existirão práticas ecológicas enquanto persistirem outras formas de dominação na sociedade como, por exemplo, a dominação masculina. Argumento que o movimento ambientalista deveria se unir ao feminismo, formando, assim, o ecofeminismo. Karen Warren (1993) afirma que o ecofeminismo se propõe a revelar conexões existentes entre a dominação masculina e a devastação ambiental. Ela enumera oito conexões:

1 - As Conexões Históricas;
2 - Conexões Conceituais;
3 - Conexões Empíricas e Experienciais;
4 - Conexões Simbólicas;
5 - Conexões Epistemológicas;
6 - Conexões Políticas (Práxis);
7 - Conexões Éticas;
8 - Conexões Teóricas.

Warren (1993) conclui sua introdução do ecofeminismo enfatizando as questões teóricas. As principais conexões teóricas entre dominação masculina e devastação ambiental encontram-se no domínio da Ética Ambiental. Existem conexões entre mulheres e natureza tanto no âmbito da filosofia tradicional Ocidental como em Aristóteles e Kant, por exemplo, quanto nas abordagens não tradicionais como as feministas, afrocêntricas e não-Ocidentais, holistas, da Ecologia Profunda e do feminismo ecológico. Assim, Warren (1993, p. 262), define o ecofeminismo como sendo "um nome para uma variedade de posições que torna visível os diferentes tipos de conexões mulher-natureza". A apresentação e caracterização introdutória de Warren (1993) nos permite agora explicitar e problematizar com mais detalhes algumas das principais correntes do ecofeminismo.

Conexões do Ecofeminismo com a Revolução Industrial e Cientifica
A historiadora Carolyn Merchant é autora do clássico ecofeminista The Death of Nature: Women, Ecology and the Scientific Revolution (A Morte da Natureza: Mulheres, Ecologia e Revolução Científica). Neste livro, Merchant (1990) explora as conexões entre a opressão promovida por uma ciência masculinista sobre as mulheres e a devastação ambiental. "Ao investigar as raízes de nosso atual dilema ambiental e suas conexões com a ciência, tecnologia e economia, nós precisamos reexaminar a formação de uma visão de mundo e uma ciência que, ao reconceitualizar a realidade como uma máquina ao invés de um organismo vivo, sancionou a dominação de ambos, mulheres e natureza" (MERCHANT In: WARREN, 1993, p. 269).

A imagem da terra como a Mãe que nos alimenta e provê as nossas necessidades serviu como um empecilho para a devastação durante muito tempo. Afinal, ninguém iria tentar arruinar ou fazer mal à própria Mãe. Até mais ou menos 1500, diz Merchant (1990), esta era a visão predominante da natureza. A partir de 1600, a Europa passou por uma intensa mecanização e gradualmente aquela imagem e espírito feminino começaram a desaparecer. A industrialização era inseparável de atividades como a mineração e o desflorestamento. Na mineração a metáfora de que a terra deveria ser "penetrada" tornou-se comum entre empreendedores e pensadores do período. Novas imagens de dominação surgiram. Aos poucos começa a desaparecer a imagem de natureza orgânica e aparecer em seu lugar a imagem da dominação tecnológica. Ocorreu, então, uma aceleração no impacto das atividades humanas no ambiente natural. Merchant (1990) observa que a ideologia da dominação industrial-científica sobre a natureza pode ser encontrada na arte, na literatura, na filosofia e na ciência do séc. XVI e XVII.

Antes disso, no entanto, "Não apenas a imagem da natureza como uma mãe que alimenta continha implicações éticas, mas, a própria estrutura orgânica, como um sistema conceitual, também carregava a ela um sistema de valor" (MERCHANT, 1990, p.5). Mas durante os séc. XVI e XVII a Europa promoveu uma desvalorização da imagem da unidade orgânica do cosmos e da sociedade. Podemos encontrar relatos e imagens da natureza orgânica antes da Revolução Científica masculinista, tanto nas culturas "tradicionais" como na filosofia Grega, Medieval e Renascentista. No Timeu de Platão, por exemplo, no séc. IV a.C., a totalidade do mundo era estruturada dentro de uma alma-animal "viva" Essa alma era fêmea e permeava a todos os seres do universo. Durante o Neoplatonismo Medieval no séc. XVII, diz Merchant (1990), o Timeu
foi interpretado junto com a Bíblia e a natureza foi comparada a uma parteira que traduzia as ideias (masculinas) em matéria e o que surgia desse parto era uma espécie de criança. Assim, tanto no Platonismo como no Neoplatonismo medieval, a natureza era feminina e estava subordinada a Deus e não ao homem.

O Neoplatonismo Renascentista dos séc. XV e XVI também cultivava a imagem do macrocosmo como sendo uma alma fêmea. No entanto, com os primeiros modos de produção capitalista, o impacto humano sobre as florestas cresceu.
Enquanto que a economia medieval tinha sido baseada em fontes renováveis de energia - madeira, água e vento- a emergente economia capitalista que estava se formando na maior parte da Europa ocidental foi baseada não apenas em fontes de energia não renováveis - carvão- mas em uma economia inorgânica  em seu núcleo - metais ferro: chumbo, prata, ouro, estanho e mercúrio — e o processo de refinação para os quais em última análise dependia da depleção das florestas (MERCHANT, 1990, p. 63).

Desse modo, argumenta Merchant (1990), os problemas ambientais não são novos, eles apenas estão em outro grau. A base da crise ecológica estaria situada na virada de uma cosmovisão orgânica e feminina da Europa pré-industrial para uma ciência masculinista — Francis Bacon e René Descartes entre outros. Bacon usava a linguagem dos tribunais da Inquisição, propondo que a natureza, tal como as mulheres condenadas, deveria ser "torturada" até que nos revelasse seus mais íntimos segredos. A estrutura orgânica e feminina do Cosmos foi substituída por Copérnico que colocou no lugar da Terra fêmea o Sol masculino como sendo o centro.

Mas Merchant (1990) destaca que ao final do séc. XVII surgirão várias reações ao mecanicismo masculino e dominante de Descartes, Gassendi, Hobbes e Boyle. Os críticos da ordem mecanicista eram em sua maioria vitalistas e reafirmavam a unidade da natureza. Entre eles/as encontrava-se Anne Conway para quem não havia a distinção Cartesiana entre espírito e corpo. Existia uma unidade orgânica entre os dois. Apesar de ter seu trabalho reconhecido por Leibniz, Anne Conway foi ignorada pela história da filosofia oficial. Baseando-se nisso Merchant (1990) nos pergunta se já não é hora de começarmos a reconhecer o trabalho e a contribuição de mulheres filósofas para o desenvolvimento cultural dos séc. XVII e XVIII e menciona os importantes nomes de Eletress de Hanover; sua filha Sophia Charlotte, rainha da Prússia; Caroline (1683 —1730) subsequente rainha da Grã-Bretanha; Damaris Mashan (1658 —1708) e Madame Gabrielle Émelie du Châtelet (1706 - 1749) que foi a principal expositora do sistema Leibniz. Essas mulheres em plena Revolução Científica dos séc. XVI, XVII e XVIII já se constituíam uma forte força de oposição aos rumos materialistas e mecanicistas que a filosofia e as ciências haviam tomado.

Outra filósofa ecofeminista que tem sido bem recebida pela crítica internacional em Ética Ambiental é a australiana VaI Plumwood, que recentemente publicou Feminism and Mastery of Nature (Feminismo e Dominação da Natureza) (1993a) e Environmental Culture: The ecological crises of reason (Cultura Ambiental: a crise ecológica da razão) (2002). Plumwood (1993) tem criticado o fato de grande parte das Éticas Ambientais atuais possuírem um viés masculino. A autora se define como uma ativista da floresta, uma caminhante do mato e uma sobrevivente de um ataque de crocodilo. Ela critica o fato de as filosofias ambientais ainda serem marcadamente formadas pela tradição racionalista que historicamente tem sido tanto contra a mulher como contra a natureza. Plumwood (1993) começa seu trabalho Nature, Self and Gender: Feminism, Environmental Philosophy and the Critique of Rationalism (Natureza, Self e Gênero: Feminismo, Filosofia Ambiental e Crítica do Racionalismo) com uma crítica à universalização da Ética Ambiental como sendo uma mera extensão da Ética humana universal. Ou seja, pega-se um princípio da Ética Humana e se aplica este princípio ao mundo natural.

Plumwood cita dois casos clássicos de extensionismo. 1) O primeiro é de Paul Taylor e seu livro Respect for Nature (Respeito pela Natureza). Taylor (1986) rejeita a tradição ocidental dominante que não considera o valor não-instrumental da natureza. Ele considera os seres vivos como centros teleológicos, centros de vida, defendendo um tipo de biocentrismo centrado na vida. Em sua teoria, o self humano inclui, também, uma natureza biológica. Por que esta Ética Ambiental é extensionista? Ela é extensionista pois se baseia numa Ética Kantiana estendida ao mundo natural. A razão pela qual Plumwood (1998) critica Taylor (1986) deve-se ao fato de ele utilizar a estrutura conceitual Kantiana que utiliza a dicotomia razão/emoção, que resulta na asserção de que a razão é superior, pois ela predomina na escolha do agente moral sobre o que é valoroso (plantas e animais). Dito de outro modo, é o ser humano, através da razão, quem define os fins e projetos que devem ser valorizados.

Taylor (1986) diz que se alguém cuida da natureza por afeição ou amor; isso não é respeito moral. Se alguém, por exemplo, cuida da natureza por gentileza para com ela, isso também não denota respeito moral, ou seja, os sentimentos são excluídos do biocentrismo de Paul Taylor. Ele vê o amor, a afeição e o cuidado como "inclinações" não racionais. Mais do que isso, diz Plumwood (1993a), essas "inclinações" são vistas como femininas e, portanto, não confiáveis e moralmente irrelevantes. Para Taylor (1986), uma Ética Biocêntrica fundada na razão Kantiana não permite "Inclinações", mas somente a legislação da Razão.

Assim, o problema principal da Ética Ambiental seria o fato de derivar seus princípios de uma noção masculinista de self. Todo projeto ambiental extensionista sofreria desse problema, diz Plumwood. O self das Éticas Ambientais extensionistas, na verdade, endossa o antropocentrismo da tradição Ocidental.

Outro exemplo de extensionismo e de racionalismo dado por Plumwood (1993a) é o da conhecida Ética Ambiental de Tom Regan. Em seu famoso livro The Case for Animal Rights (O Caso para os Direitos Animais), o conceito básico evocado por Regan (2004) para a defesa e o bem estar animal é o de "direitos". Este conceito é "estendido" da comunidade humana para os animais. Plumwood (1993) argumenta que o conceito de "direitos" para animais colapsa quando aplicado no contexto de predadores em um ecossistema. O conceito de direitos parece funcionar bem apenas para animais domésticos. E ainda mais, o conceito de direitos, diz Plumwood (1993), foi criado na esfera pública masculina do sujeito autónomo. Seria melhor para a proteção dos animais se usássemos conceitos como respeito, afinidade, cuidado, preocupação, compaixão, gratidão, amizade e responsabilidade. Estes conceitos fariam parte da esfera privada, vista sempre pelos homens como emocional e, portanto, periférica para as questões da esfera pública. Os conceitos da chamada esfera privada teriam muito mais chance de oferecer uma abordagem não-instrumental da natureza do que os da esfera pública.  Seria necessário abandonarmos o dualismo razão/emoção que caracteriza a tradição racionalista Ocidental.

Ecofeminismo, Ecologia Profunda e Racionalismo
Aparentemente a Ecologia Profunda (Deep Ecology) rompe com a corrente principal do dualismo que separa os humanos da natureza na tradição racionalista Cartesiana. A Ecologia Profunda oferece uma solução para esse problema em termos de uma "identificação" do self com a natureza. Uma das teses defendidas pela Ecologia Transpessoal é a da indistinção entre self e natureza. Em outro trabalho (GRON, 2005) eu argumento que esta tese pode levar à dissolução do self na natureza. Grimshaw apud Plumwood (1993), diz que para cuidar do outro eu tenho que me distinguir do outro. Eu alertaria ainda para a impossibilidade de uma política ambiental nessas condições de indistinção entre self e natureza. Tendo isso em vista, Plumwood (1993) defende uma abordagem do self relacional não-holístico. Ela acredita que essa abordagem do self tem mais a ver com uma filosofia feminista e é capaz de vencer a abordagem do viés egoísta liberal da tradição masculinista. Já a hipótese expansionista da Ecologia Profunda proposta por Ame Naess (1995) também não escapa de certos elementos racionalistas. Em Grün (2005) argumento que ao expandir o self ilimitadamente na natureza e até mesmo no Cosmos, a Ecologia Profunda acaba por "humanizar" o Cosmos, enquadrando-se, assim, na tradição racionalista antropocêntrica.

O australiano Warwick Fox (1993), no entanto, vê paralelos entre o ecofeminismo e a Ecologia Profunda e acredita que, em alguns sentidos, ambos têm uma plataforma comum. Ele começa enfatizando o caráter bio-igualitário dos humanos com as outras entidades da ecosfera, como, por exemplo, rios, paisagens e ecossistemas. O termo "vida" é empregado de maneira ampla. O igualitarismo tanto pode ser entendido como válido para as entidades vivas do planeta como ser estendido para entidades não vivas, como rochas.
O objetivo com isso é escapar de toda e qualquer forma de dominação humana. Ame Naess (1995) fala de um igualitarismo biocêntrico. Fox (1993) prefere o termo ecocêntrico, pois biocêntrico, devido ao prefixo bio, pode dar a entender que apenas entidades vivas são foco de atitudes igualitárias. Outra razão para usar o termo ecocentrismo é que esse termo é próximo de Oikos — lar. Fox (1993) acredita que outras formas de igualitarismo como os movimentos anti-racistas, anti-imperialistas e feministas podem partilhar de uma mesma agenda ecocêntrica para vencer o legado antropocêntrico. Mas sua proposta tem sido muito criticada por alguns ecofeministas de destaque como Jim Cheney (1993) que advoga que a compreensão entre homens e mulheres sobre a natureza é "essencialmente" diferente.

Seguindo uma outra linha, Plumwood (1993a) critica a Ecologia Profunda, nos seus primórdios, por esta eliminar a diferença. Baseando-se no famoso estudo de Gilligan (1982) In a Different Voice, diz que cada voz de cada mulher é única. Gilligan (1982) é uma das fundadoras da chamada Standpoint teoria (HARDING, 2004), ou seja, uma teoria feminista que depende do ponto de vista do ator social e, consequentemente, do lugar ocupado pela mulher na sociedade. Cada mulher tem uma voz que é única. Isso levou Callicott a desacreditar o ecofeminismo dizendo que trata-se de unia postura anti-teórica, "um projeto cacofônico de coleções de estórias baseadas no que ele supõe ser uma rejeição do "essencialismo masculinista" e de práticas como a construção de uma teoria" (CALLICOTT apud CUOMO, 1998, p.21).

Plumwood (1993a) contrariando Callicott sugere que os novos avanços pluralistas da filosofia da Ecologia Profunda trouxeram uma política de incorporação (não no sentido de absorver e eliminar) da diferença em sua abordagem igualitária. Os Ecologistas Profundos passaram a dizer que não há nenhum problema em reconhecer que os grandes opressores do mundo de hoje são homens, brancos, capitalistas e Ocidentais, mas seria necessário aliar essa crítica a uma crítica à ideologia humanocêntrica que estaria por trás de muitas outras formas de dominação.

Os Ecologistas Profundos problematizam tanto os humanos como o conceito de humanidade. Ambos são vistos como quase malignos em seu exacerbado antropocentrismo. Ao final de suas considerações, Plumwood (1993a) assegura que são possíveis abordagens conciliatórias entre aqueles grupos que lutam pela distribuição do poder na sociedade (feminismo, marxismo, antiracismo e anti-imperialismo) e a abordagem igualitária da Ecologia Profunda e sua crítica daquela que é considerada a legitimação "que tem habitualmente sido empregada por aqueles que são os maiores responsáveis pela dominação social e pela destruição ecológica" (PWMWOOD, 1993a, p.228).

Ecoferninsmo em urna voz diferente
A australiana Salleh (1993) também baseia seus argumentos no livro de Gilligan (1982) In a Different Voice (Em uma Voz Diferente) e diz que as "vozes diferentes" das mulheres são raramente ouvidas, mas que tais vozes em diferentes culturas apresentam modelos alternativos para uma Ética Ambiental. A autora parte de dados preocupantes, apontando o fato de que atualmente, apesar de representarem mais ou menos metade da população humana, as mulheres ocupam cerca de 65% da força de trabalho e recebem menos de 10% da renda global. Salleh (1993) diz que as análises ecofeministas do patriarcado é que tem revelado isso. Ela parte de iniciativas práticas para provar que as mulheres, em muitos lugares, principalmente no chamado Terceiro Mundo, têm se relacionado com a natureza com reciprocidade, ao passo que os homens brancos, capitalistas e ocidentais se "relacionam" através do controle.

Para provar sua tese, Salleh (1993) cita diversos programas ambientais das Nações Unidas e de Organizações Não-Governamentais (ONGs) que focalizam suas atenções nas mulheres como agentes frente aos desafios da sustentabilidade, mostrando como elas obtiveram sucesso em seus empreendimentos. Salleh (1993) cita, ainda, as inúmeras organizações internacionais que procuram dar voz às mulheres no enfrentamento das crises ambientais como a World Wide Women in Defense of Enuironment — Washington D.C., que procura superar os esquemas superficiais de desenvolvimento e dar voz àquelas que Gilligan (1982) considera portadoras de "urna voz diferente".

Ecofeminismo e Essencialismo
O ecofeminismo em muitas de suas vertentes defende que a mulher teria uma relação "mais natural" com o ambiente. Isso é particularmente percebido nos enfoques ecofeministas dados às mulheres do que Santos (2005) chama de Sul Globalizado. Essas tendências mais naturalizantes, muitas vezes, apregoam o desenvolvimento de uma certa espiritualidade na relação das mulheres com a natureza. As mulheres seriam portadoras de um caráter sagrado. Santos (2005) faz uma crítica dessas pretensões do ecofeminismo dizendo que trata-se muito mais de uma visão do Norte Imperial sobre o Sul do que uma característica das relações das mulheres com o ambiente no Sul Globalizado.

O estereótipo predominante nesse tipo de abordagem é o da mulher rural que é obrigada a caminhar longas distâncias em busca de água, lenha e outros recursos para assegurar a manutenção da sua casa. Essa abordagem, ao gerar apenas uma imagem essencialista das mulheres subalternizadas, torna invisível toda uma extensa franja de mulheres que, por exemplo, vivem em ambiente urbano ou perturbaria nos países do Terceiro Mundo" (SANTOS, 2005, p.51),
Para o autor, o ecofeminismo romantiza as mulheres do Sul em seu papel de guardiãs originais e naturais da natureza Essas críticas são realmente um alerta necessário. No entanto, Santos (2005) se equivoca ao afirmar que o ecofeminismo como um todo não articula diferenças de classe, étnicas, raciais e geográficas.

O ecofeminismo socialista igualitário dá conta perfeitamente de tematizar as diferenças de classe. O bioregionalismo ecofeminista articula as diferenças geográficas, Inclusive as diferenças entre o Norte e o Sul, denunciando o eurocentrismo. Já as diferenças étnicas e raciais são trabalhadas por Cuomo (1998) em Feminism and Ecological Communities: an ethic of flourishing (Feminismo e Comunidades Ecológicas: uma ética do florescer). Apesar de corretas, as críticas de Santos (2005) ainda vêem o ecofeminismo como um movimento homogêneo, coisa que como vimos, não ocorre. Além disso, ele esquece de citar as duas maiores expoentes do chamado ecofeminismo cultural: Karen Warren e Val Plumwood. O termo "cultural" é obviamente um eufemismo. Na verdade, aponta para o fato de serem críticas do caráter essencialista que acompanha muitas das posturas do ecofeminismo. Warren (1993) defende a narrativa como constitutiva do ecofeminismo, pois expressam atitudes que emergem em situações particulares e Plumwood (1993, 2002) defende o self-relacional.

Karen Warren: O poder e a promessa do ecofeminismo
O que conta como abordagem ecofeminista depende muito do contexto particular das vidas das mulheres. Warren (1993, p.435, ênfase da autora) diz que "uma estrutura conceitual opressiva é aquela que explica, justifica e mantém relações de dominação e subordinação". Ela argumenta que a estrutura conceitual opressiva mais importante é a "lógica da dominação". Warren (1993) diz que não existe nada particularmente errado com o pensamento hierárquico ou com o pensamento hierárquico sobre valores. O pensamento hierárquico pode ser muito útil para comparar dados e organizar materiais. Mas quando o pensamento hierárquico sobre valor ocorre dentro de uma estrutura conceitual opressiva ele se torna problemático, pois estabelece a inferioridade. Muitas vezes, a diferença é tratada em termos de superioridade. Vejamos com funciona o argumento de Warren (1993, p. 436): "Humanos são diferentes de plantas e rochas porque os humanos podem (e plantas e rochas não podem) conscientemente e radicalmente modificar as comunidades nas quais eles/elas vivem; humanos são similares a plantas e rochas no fato de serem ambos membros de uma comunidade ecológica". Aparentemente esse argumento não é opressor. Mas se adicionarmos a esse argumento mais duas conclusões, a configuração muda: 1) humanos são moralmente superiores a (pelo menos) alguns não-humanos; 2) e essa superioridade justifica a subordinação. Assim, a lógica da dominação se conclui. Essa lógica da dominação, diz Warren (1993), deveria estar no topo de uma agenda ecofeminista.

Na cultura Ocidental dominante as estruturas conceituais patriarcais têm advogado que o domínio do mental pertence aos homens, ao passo que o domínio da natureza seria identificado com a mulher. O argumento é dado em termos de diferença. Mas o pensamento hierárquico sobre o valor permite que Warren (1993) extraia mais conclusões: 1) O argumento estabelece o patriarcado. 2) A dominação sistemática das mulheres pelos homens é justificada. Muitos (as) ecofeministas têm afirmado que as premissas do argumento de que as mulheres podem ser identificadas com a natureza enquanto os homens se caracterizam pelo domínio mental e abstrato é falsa. Afinal, baseia-se em uma indevida sanção ética construída historicamente. Estas asserções de diferença são problemáticas porque "têm funcionado historicamente em uma estrutura conceituai patriarcal e cultural que sanciona a dominação da mulher e da natureza" (WARREN, 1993, p.437).

Esse argumento é denominado por muitos ecofeministas de dominação gêmea". Assim concebido, o ecofeminismo seria necessário a qualquer forma de feminismo, pois clarifica a lógica da dominação. A clarificação dessa lógica pode vir a construir uma noção mais significativa de diferença onde esta funcione como um movimento de solidariedade entre diferentes mulheres de diferentes raças, classes, idades, orientação afetiva etc. "Ecofeministas insistem que o tipo de lógica da dominação usada para justificar a dominação de humanos por gênero, raça ou etnia, ou status de classe é também usada para justificar a dominação da natureza" (WARREN, 1993, p. 438).

Tal como Plumwood (1993a, 2002), Warren (1993) defende um self-relacional e, por isso, defende, também, as narrativas éticas feministas na primeira pessoa, pois isso mostra que o eu está¬em-relação sempre. Esta condição, por sua vez, pode fazer com que emerjam narrativas éticas não-patriarcais. Cheney (1993) também defende o uso de narrativas éticas tanto no feminismo como no ecofeminismo. Para Cheney (1993) e Warren (1993) uma narrativa é ética quando não leva à dominação e à conquista, e sim coloca o eu-em-relação e não em subordinação. Warren (1993, p. 441) cita o caso de um alpinista que não escala a montanha para dominá-la, mas para estar-em-relação com as rochas. "Como alguém narra a experiência de escalar uma montanha e como este alguém a escala é algo que importa eticamente". O ecofeminismo é contra todas as formas de dominação: anti-sexista, anti-racista, anti-classista etc. O feminismo teria que acolher o feminismo ecológico, uma vez que a dominação da mulher está historicamente conectada com a dominação da natureza. É a chamada dominação gêmea. Para Warren (1993) um mundo mais desejável seria aquele onde a diferença não alimentasse mais a dominação, mas sim a diversidade.

Conexões do Ecofeminismo com trabalhadores e animais
Cuomo (1998) oferece uma crítica aos sistemas masculinistas de dominação e explora, também, ambientalismos não feministas. Ela menciona o exemplo de como a opressão de animais, principalmente fêmeas, reforça a opressão da mulher. Citando Gaard e Gruen (2003), Cuomo (1998, p. 19-20) observa que:

Com o objetivo de manter vacas leiteiras em um constante estado de lactação, elas precisam ficar grávidas anualmente. Após seu primeiro filhote ser tornado dela no nascimento, ela é ordenhada por máquinas duas vezes, em algumas ocasiões três vezes ao dia por dez meses. Após o terceiro mês ela será engravidada novamente. Ela vai dar à luz apenas seis ou oito semanas após secar o leite. Esse intenso ciclo de gravidez e superlactação pode durar cerca de cinco anos e então a vaca "gasta" é mandada para o abate.
Um terço das vacas leiteiras sofrem de mastitis, uma doença que infecta as mamas. A causa mais comum de mastitis são agentes patogênicos que resultam de sórdidas condições de moradia, particularmente por contaminação fecal... O resultado para a vaca é sangramento e dor aguda, particularmente durante a ordenha (que é sempre feita pela máquina).
Vacas leiteiras são sempre artificialmente inseminadas. De acordo com fazendeiros este método é mais rápido, mais eficiente e mais barato que manter touros. Com o uso de injeção de hormônios as vacas irão produzir dúzias de ovos a qualquer época. Após a inseminação artificial, os embriões serão descarregados no útero e transplantados para a mãe portadora através de incisões em seus flancos. O Hormônio do Crescimento Bovino (BGH) está sendo vendido como um revolucionário meio de aumentar a produção sem acréscimo nos custos de alimentação. As vacas estão produzindo mais leite do que seus corpos podem e mais do que a demanda do mercado. Com o advento da BGH, a já curta e dolorosa vida da vaca leiteira tornou-se ainda mais curta e dolorosa.

Assim, como podemos observar, as fazendas também são foco de atenção das ecofeministas, não só pelo que diz respeito às condições de vida dos animais, mas também às condições de trabalho de empregados, e nos trazem dados surpreendentes. Wright citado em Cuomo (1998), argumenta que de 80% a 90% dos empregados das fazendas dos Estados Unidos são latinos ou afrodescententes. A cada ano 313.000 trabalhadores adoecem devido à contaminação dos pesticidas e, geralmente, mulheres hispânicas mostram índices muito mais altos de pesticida em seu leite do que mulheres brancas. Além disso, Cuomo (1998) observa que os mais atingidos são justamente os trabalhadores mais pobres e não-brancos que não têm plano de saúde.

Ecofeminismo, justiça global e Educação Ambiental
Enquanto muitas pessoas estão conscientes da forte injustiça na distribuição da riqueza globalmente, poucos percebem sua magnitude — 85% da renda do mundo vai para 23% das pessoas. Com efeito, os países industrializados (o Norte) estão drenando os recursos do Terceiro Mundo (o Sul). Uma pessoa no Norte consome 52 vezes mais carne, 115 vezes mais papel e 35 vezes mais energia que um Latino-americano de acordo com Margarita Mas da Costa Rica. Com apenas 5% das pessoas do mundo, os Estados Unidos usam um terço dos recursos não renováveis do mundo e um quarto dos produtos do planeta; em média um cidadão dos Estados Unidos usa 300 vezes mais energia que um cidadão do Terceiro Mundo ( GAARD; GRUEN, 2003, p. 276).

As ecofeministas Greta Gaard e Lori Gruen (2003) observam que à primeira vista o quadro acima descrito e muitos outros em nossa conjuntura de injustiça interpessoal e internacional parecem não ter nada a ver com o ecofeminismo e a Educação Ambiental. Contudo, dizem as autoras, se for possível identificar práticas de subordinação das mulheres na conjuntura acima expressa, então, necessariamente, trata-se de um assunto feminista. O argumento básico das ecofeministas é de que as crianças, as mulheres e os negros são os primeiros a serem atingidos pela devastação ambiental.

Tecendo Conexões entre Educação Ambiental e justiça global
A maioria das socialistas feministas nos Estados Unidos tinha em sua agenda política no início dos anos de 1970 a opressão das mulheres não só pelo patriarcado, mas também pelo capitalismo (GAARD; GRUEN, 2003). As ecofeministas, por sua vez, estão desenvolvendo uma abordagem "multisistema". Essa abordagem trata das "interconexões entre as forças que operam para oprimir as mulheres e a natureza" (op. cit., 2003). Trata-se de um cruzamento de diversos campos de força que criam sistemas complexos de opressão. A injustiça global seria o resultado de ideologias que se reforçam mutuamente: racismo, sexismo, classismo, imperialismo etc. Para ilustrar melhor como operam esses campos de forças opressoras e como o ecofeminismo responde a esse complexo fenômeno, Gaard e Gruen (2003) citam o exemplo da criação intensiva de animais em um ambiente altamente regulado para extrair o máximo de lucro desses animais. Elas alertam: são diferentes teóricos com diferentes argumentos que não são necessariamente incompatíveis entre si. Por exemplo, o feminismo liberal argumentaria a partir da distinção Ocidental racional entre natureza e cultura, e sendo os animais pertencentes ao domínio do natural, elas não teriam nada a dizer.

No entanto, as feministas liberais se consideram indivíduos autônomos que podem escolher o que comer e isso poderia levá-las a uma luta por uma distribuição mais justa da proteína animal no mundo, apontando para as consequências que isso teria na vida das mulheres. As feministas socialistas focariam no caráter patriarcal e capitalista da exploração de animais até a exaustão. "Elas poderiam salientar, por exemplo, que nos estados Unidos, oito corporações responsáveis pela morte de 5.3 milhões de aves anualmente, controlam 50% do mercado de frangos". Argumentariam, ainda, que 95% dos trabalhadores de aviários são mulheres negras.
A maior parte dos teóricos ambientais não se preocupam muito com o fato de comer carne. São poucos em Ética Ambiental que defendem o vegetarianismo como solução para a crise ecológica, entretanto, uma variedade enorme de teóricos estão preocupados com os animais industrializados, entre eles vários biocentristas e holistas. Já uma análise com um enfoque vindo de um país do Sul poderia situar essa instituição — a fazenda-fábrica — no marco daquelas que contribuem para o superconsumo. Ainda na esteira de uma análise do Sul ou do chamado Terceiro Mundo poderia se estabelecer conexões com o Agrobussines, pesticidas e monoculturas em seus países. A perspectiva crítica do Animal liberation também pode ser útil para a análise ecofeminista "multisistemas". Para esses filósofos a exploração cruel dos animais é imoral. A falha em reconhecer essa imoralidade é denominada por Singer (1995) de especismo, ou seja, controle, exploração e preconceito de uma espécie — humana — sobre outra animal. Assim, na interseção dos diversos campos de força que analisam o fenômeno da industrialização dos animais, as ecofeministas expõem como a lógica da dominação sustenta essa instituição (fazenda-fábrica) e como isso afeta os animais, os trabalhadores e a natureza.

Como vimos, o ecofeminismo quer um mundo melhor. Mas como vai ser esse mundo depende das diversas vozes e experiências que dele participam. O ecofeminismo é inclusivo, flexível e reflexivo, seu enfoque é o da comunalidade de pontos de vista, respeitando as diferenças. É importante construir coalizões para lutar contra as mais diversas formas de opressão. "Nada menos que o futuro da terra e de todos seus habitantes pode depender de como efetivamente nós podemos trabalhar juntos para realizar a justiça global e a saúde planetária" (GAARD; GRUEN, 2003, p. 287).

Referências
CHENEY, Jim. Postmodern Environment Ethics: Ethics as Bioregional Narrative. In: OELSCHLAEGER, Max (Ed.). Postmodern Environmental Ethics. Albany: Suny Press, 1993.
CUOMO, Chris J. Feminism and Ecological Communities: an ethic of flourishing. New York: Routledge, 1998.
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