“O homem está há muito tempo na
administração do planeta. As coisas não estão bem. Falhamos”, diz o filósofo
Mauro Grün.
Ecofeminismo
Mauro Grun
Santos (2005)
observa que o ambientalismo e o feminismo são os maiores e mais fortes
movimentos sociais globalizados Desde o início dos anos de 1970, Rosemary
Radford Ruether tem defendido que o ambiente é um assunto feminista. A asserção
básica do ecofeminismo é a de que existem visões de mundo e práticas que são
baseadas nos modelos de dominação dos homens sobre as mulheres. O argumento de
Ruether (1975) é o de que não existirão práticas ecológicas enquanto persistirem
outras formas de dominação na sociedade como, por exemplo, a dominação masculina.
Argumento que o movimento ambientalista deveria se unir ao feminismo, formando,
assim, o ecofeminismo. Karen Warren (1993) afirma que o ecofeminismo se propõe
a revelar conexões existentes entre a dominação masculina e a devastação
ambiental. Ela enumera oito conexões:
1 - As Conexões Históricas;
2 - Conexões Conceituais;
3 - Conexões Empíricas e Experienciais;
4 - Conexões Simbólicas;
5 - Conexões Epistemológicas;
6 - Conexões Políticas (Práxis);
7 - Conexões Éticas;
8 - Conexões Teóricas.
Warren (1993)
conclui sua introdução do ecofeminismo enfatizando as questões teóricas. As principais
conexões teóricas entre dominação masculina e devastação ambiental encontram-se
no domínio da Ética Ambiental. Existem conexões entre mulheres e natureza tanto
no âmbito da filosofia tradicional Ocidental como em Aristóteles e Kant, por
exemplo, quanto nas abordagens não tradicionais como as feministas,
afrocêntricas e não-Ocidentais, holistas, da Ecologia Profunda e do feminismo
ecológico. Assim, Warren (1993, p. 262), define o ecofeminismo como sendo
"um nome para uma variedade de posições que torna visível os diferentes
tipos de conexões mulher-natureza". A apresentação e caracterização
introdutória de Warren (1993) nos permite agora explicitar e problematizar com
mais detalhes algumas das principais correntes do ecofeminismo.
Conexões do
Ecofeminismo com a Revolução Industrial e Cientifica
A historiadora
Carolyn Merchant é autora do clássico ecofeminista The Death of Nature: Women,
Ecology and the Scientific Revolution (A Morte da Natureza: Mulheres, Ecologia
e Revolução Científica). Neste livro, Merchant (1990) explora as conexões entre
a opressão promovida por uma ciência masculinista sobre as mulheres e a devastação
ambiental. "Ao investigar as raízes de nosso atual dilema ambiental e suas
conexões com a ciência, tecnologia e economia, nós precisamos reexaminar a
formação de uma visão de mundo e uma ciência que, ao reconceitualizar a
realidade como uma máquina ao invés de um organismo vivo, sancionou a dominação
de ambos, mulheres e natureza" (MERCHANT In: WARREN, 1993, p. 269).
A imagem da
terra como a Mãe que nos alimenta e provê as nossas necessidades serviu como um
empecilho para a devastação durante muito tempo. Afinal, ninguém iria tentar
arruinar ou fazer mal à própria Mãe. Até mais ou menos 1500, diz Merchant
(1990), esta era a visão predominante da natureza. A partir de 1600, a Europa
passou por uma intensa mecanização e gradualmente aquela imagem e espírito
feminino começaram a desaparecer. A industrialização era inseparável de
atividades como a mineração e o desflorestamento. Na mineração a metáfora de
que a terra deveria ser "penetrada" tornou-se comum entre
empreendedores e pensadores do período. Novas imagens de dominação surgiram.
Aos poucos começa a desaparecer a imagem de natureza orgânica e aparecer em seu
lugar a imagem da dominação tecnológica. Ocorreu, então, uma aceleração no
impacto das atividades humanas no ambiente natural. Merchant (1990) observa que
a ideologia da dominação industrial-científica sobre a natureza pode ser
encontrada na arte, na literatura, na filosofia e na ciência do séc. XVI e
XVII.
Antes disso,
no entanto, "Não apenas a imagem da natureza como uma mãe que alimenta
continha implicações éticas, mas, a própria estrutura orgânica, como um sistema
conceitual, também carregava a ela um sistema de valor" (MERCHANT, 1990,
p.5). Mas durante os séc. XVI e XVII a Europa promoveu uma desvalorização da
imagem da unidade orgânica do cosmos e da sociedade. Podemos encontrar relatos
e imagens da natureza orgânica antes da Revolução Científica masculinista,
tanto nas culturas "tradicionais" como na filosofia Grega, Medieval e
Renascentista. No Timeu de Platão, por exemplo, no séc. IV a.C., a totalidade
do mundo era estruturada dentro de uma alma-animal "viva" Essa alma
era fêmea e permeava a todos os seres do universo. Durante o Neoplatonismo
Medieval no séc. XVII, diz Merchant (1990), o Timeu
foi interpretado junto com a
Bíblia e a natureza foi comparada a uma parteira que traduzia as ideias (masculinas)
em matéria e o que surgia desse parto era uma espécie de criança. Assim, tanto
no Platonismo como no Neoplatonismo medieval, a natureza era feminina e estava
subordinada a Deus e não ao homem.
O Neoplatonismo
Renascentista dos séc. XV e XVI também cultivava a imagem do macrocosmo como
sendo uma alma fêmea. No entanto, com os primeiros modos de produção
capitalista, o impacto humano sobre as florestas cresceu.
Enquanto que
a economia medieval tinha sido baseada em fontes renováveis de energia - madeira,
água e vento- a emergente economia capitalista que estava se formando na maior
parte da Europa ocidental foi baseada não apenas em fontes de energia não
renováveis - carvão- mas em uma economia inorgânica em seu núcleo - metais ferro: chumbo, prata,
ouro, estanho e mercúrio — e o processo de refinação para os quais em última
análise dependia da depleção das florestas (MERCHANT, 1990, p. 63).
Desse modo,
argumenta Merchant (1990), os problemas ambientais não são novos, eles apenas
estão em outro grau. A base da crise ecológica estaria situada na virada de uma
cosmovisão orgânica e feminina da Europa pré-industrial para uma ciência
masculinista — Francis Bacon e René Descartes entre outros. Bacon usava a linguagem
dos tribunais da Inquisição, propondo que a natureza, tal como as mulheres
condenadas, deveria ser "torturada" até que nos revelasse seus mais
íntimos segredos. A estrutura orgânica e feminina do Cosmos foi substituída por
Copérnico que colocou no lugar da Terra fêmea o Sol masculino como sendo o
centro.
Mas Merchant
(1990) destaca que ao final do séc. XVII surgirão várias reações ao mecanicismo
masculino e dominante de Descartes, Gassendi, Hobbes e Boyle. Os críticos da
ordem mecanicista eram em sua maioria vitalistas e reafirmavam a unidade da
natureza. Entre eles/as encontrava-se Anne Conway para quem não havia a
distinção Cartesiana entre espírito e corpo. Existia uma unidade orgânica entre
os dois. Apesar de ter seu trabalho reconhecido por Leibniz, Anne Conway foi
ignorada pela história da filosofia oficial. Baseando-se nisso Merchant (1990)
nos pergunta se já não é hora de começarmos a reconhecer o trabalho e a
contribuição de mulheres filósofas para o desenvolvimento cultural dos séc.
XVII e XVIII e menciona os importantes nomes de Eletress de Hanover; sua filha
Sophia Charlotte, rainha da Prússia; Caroline (1683 —1730) subsequente rainha
da Grã-Bretanha; Damaris Mashan (1658 —1708) e Madame Gabrielle Émelie du
Châtelet (1706 - 1749) que foi a principal expositora do sistema Leibniz. Essas
mulheres em plena Revolução Científica dos séc. XVI, XVII e XVIII já se
constituíam uma forte força de oposição aos rumos materialistas e mecanicistas
que a filosofia e as ciências haviam tomado.
Outra filósofa
ecofeminista que tem sido bem recebida pela crítica internacional em Ética
Ambiental é a australiana VaI Plumwood, que recentemente publicou Feminism and Mastery of Nature (Feminismo e
Dominação da Natureza) (1993a) e Environmental
Culture: The ecological crises of reason (Cultura Ambiental: a crise ecológica da razão) (2002). Plumwood
(1993) tem criticado o fato de grande parte das Éticas Ambientais atuais
possuírem um viés masculino. A autora se define como uma ativista da floresta,
uma caminhante do mato e uma sobrevivente de um ataque de crocodilo. Ela
critica o fato de as filosofias ambientais ainda serem marcadamente formadas
pela tradição racionalista que historicamente tem sido tanto contra a mulher
como contra a natureza. Plumwood (1993) começa seu trabalho Nature, Self and Gender: Feminism,
Environmental Philosophy and the Critique of Rationalism (Natureza, Self e Gênero: Feminismo, Filosofia Ambiental e Crítica
do Racionalismo) com uma crítica à universalização da Ética Ambiental como
sendo uma mera extensão da Ética humana universal. Ou seja, pega-se um
princípio da Ética Humana e se aplica este princípio ao mundo natural.
Plumwood cita
dois casos clássicos de extensionismo. 1) O primeiro é de Paul Taylor e seu
livro Respect for Nature (Respeito pela Natureza). Taylor (1986) rejeita a
tradição ocidental dominante que não considera o valor não-instrumental da
natureza. Ele considera os seres vivos como centros teleológicos, centros de vida,
defendendo um tipo de biocentrismo centrado na vida. Em sua teoria, o self
humano inclui, também, uma natureza biológica. Por que esta Ética Ambiental é
extensionista? Ela é extensionista pois se baseia numa Ética Kantiana estendida
ao mundo natural. A razão pela qual Plumwood (1998) critica Taylor (1986)
deve-se ao fato de ele utilizar a estrutura conceitual Kantiana que utiliza a
dicotomia razão/emoção, que resulta na asserção de que a razão é superior, pois
ela predomina na escolha do agente moral sobre o que é valoroso (plantas e animais).
Dito de outro modo, é o ser humano, através da razão, quem define os fins e
projetos que devem ser valorizados.
Taylor (1986)
diz que se alguém cuida da natureza por afeição ou amor; isso não é respeito
moral. Se alguém, por exemplo, cuida da natureza por gentileza para com ela,
isso também não denota respeito moral, ou seja, os sentimentos são excluídos do
biocentrismo de Paul Taylor. Ele vê o amor, a afeição e o cuidado como
"inclinações" não racionais. Mais do que isso, diz Plumwood (1993a),
essas "inclinações" são vistas como femininas e, portanto, não
confiáveis e moralmente irrelevantes. Para Taylor (1986), uma Ética Biocêntrica
fundada na razão Kantiana não permite "Inclinações", mas somente a legislação
da Razão.
Assim, o problema
principal da Ética Ambiental seria o fato de derivar seus princípios de uma
noção masculinista de self. Todo projeto ambiental extensionista sofreria desse
problema, diz Plumwood. O self das Éticas Ambientais extensionistas, na
verdade, endossa o antropocentrismo da tradição Ocidental.
Outro exemplo de extensionismo e
de racionalismo dado por Plumwood (1993a) é o da conhecida Ética Ambiental de
Tom Regan. Em seu famoso livro The Case
for Animal Rights (O Caso para os Direitos Animais), o conceito básico
evocado por Regan (2004) para a defesa e o bem estar animal é o de
"direitos". Este conceito é "estendido" da comunidade
humana para os animais. Plumwood (1993) argumenta que o conceito de
"direitos" para animais colapsa quando aplicado no contexto de predadores
em um ecossistema. O conceito de direitos parece funcionar bem apenas para
animais domésticos. E ainda mais, o conceito de direitos, diz Plumwood (1993),
foi criado na esfera pública masculina do sujeito autónomo. Seria melhor para a
proteção dos animais se usássemos conceitos como respeito, afinidade, cuidado,
preocupação, compaixão, gratidão, amizade e responsabilidade. Estes conceitos
fariam parte da esfera privada, vista sempre pelos homens como emocional e, portanto,
periférica para as questões da esfera pública. Os conceitos da chamada esfera
privada teriam muito mais chance de oferecer uma abordagem não-instrumental da
natureza do que os da esfera pública.
Seria necessário abandonarmos o dualismo razão/emoção que caracteriza a
tradição racionalista Ocidental.
Ecofeminismo, Ecologia Profunda e Racionalismo
Aparentemente
a Ecologia Profunda (Deep Ecology)
rompe com a corrente principal do dualismo que separa os humanos da natureza na
tradição racionalista Cartesiana. A Ecologia Profunda oferece uma solução para
esse problema em termos de uma "identificação" do self com a
natureza. Uma das teses defendidas pela Ecologia Transpessoal é a da
indistinção entre self e natureza. Em outro trabalho (GRON, 2005) eu argumento
que esta tese pode levar à dissolução do self na natureza. Grimshaw apud
Plumwood (1993), diz que para cuidar do outro eu tenho que me distinguir do
outro. Eu alertaria ainda para a impossibilidade de uma política ambiental
nessas condições de indistinção entre self e natureza. Tendo isso em vista,
Plumwood (1993) defende uma abordagem do self relacional não-holístico. Ela
acredita que essa abordagem do self tem mais a ver com uma filosofia feminista
e é capaz de vencer a abordagem do viés egoísta liberal da tradição
masculinista. Já a hipótese expansionista da Ecologia Profunda proposta por Ame
Naess (1995) também não escapa de certos elementos racionalistas. Em Grün
(2005) argumento que ao expandir o self ilimitadamente na natureza e até mesmo
no Cosmos, a Ecologia Profunda acaba por "humanizar" o Cosmos,
enquadrando-se, assim, na tradição racionalista antropocêntrica.
O australiano
Warwick Fox (1993), no entanto, vê paralelos entre o ecofeminismo e a Ecologia
Profunda e acredita que, em alguns sentidos, ambos têm uma plataforma comum.
Ele começa enfatizando o caráter bio-igualitário dos humanos com as outras
entidades da ecosfera, como, por exemplo, rios, paisagens e ecossistemas. O termo
"vida" é empregado de maneira ampla. O igualitarismo tanto pode ser
entendido como válido para as entidades vivas do planeta como ser estendido
para entidades não vivas, como rochas.
O objetivo com
isso é escapar de toda e qualquer forma de dominação humana. Ame Naess (1995)
fala de um igualitarismo biocêntrico. Fox (1993) prefere o termo ecocêntrico,
pois biocêntrico, devido ao prefixo bio, pode dar a entender que apenas
entidades vivas são foco de atitudes igualitárias. Outra razão para usar o termo
ecocentrismo é que esse termo é próximo de Oikos — lar. Fox (1993) acredita que
outras formas de igualitarismo como os movimentos anti-racistas,
anti-imperialistas e feministas podem partilhar de uma mesma agenda ecocêntrica
para vencer o legado antropocêntrico. Mas sua proposta tem sido muito criticada
por alguns ecofeministas de destaque como Jim Cheney (1993) que advoga que a
compreensão entre homens e mulheres sobre a natureza é
"essencialmente" diferente.
Seguindo uma
outra linha, Plumwood (1993a) critica a Ecologia Profunda, nos seus primórdios,
por esta eliminar a diferença. Baseando-se no famoso estudo de Gilligan (1982) In a Different Voice, diz que cada voz
de cada mulher é única. Gilligan (1982) é uma das fundadoras da chamada Standpoint teoria (HARDING, 2004), ou
seja, uma teoria feminista que depende do ponto de vista do ator social e,
consequentemente, do lugar ocupado pela mulher na sociedade. Cada mulher tem uma
voz que é única. Isso levou Callicott a desacreditar o ecofeminismo dizendo que
trata-se de unia postura anti-teórica, "um projeto cacofônico de coleções
de estórias baseadas no que ele supõe ser uma rejeição do "essencialismo
masculinista" e de práticas como a construção de uma teoria"
(CALLICOTT apud CUOMO, 1998, p.21).
Plumwood
(1993a) contrariando Callicott sugere que os novos avanços pluralistas da
filosofia da Ecologia Profunda trouxeram uma política de incorporação (não no
sentido de absorver e eliminar) da diferença em sua abordagem igualitária. Os
Ecologistas Profundos passaram a dizer que não há nenhum problema em reconhecer
que os grandes opressores do mundo de hoje são homens, brancos, capitalistas e
Ocidentais, mas seria necessário aliar essa crítica a uma crítica à ideologia
humanocêntrica que estaria por trás de muitas outras formas de dominação.
Os Ecologistas
Profundos problematizam tanto os humanos como o conceito de humanidade. Ambos
são vistos como quase malignos em seu exacerbado antropocentrismo. Ao final de
suas considerações, Plumwood (1993a) assegura que são possíveis abordagens
conciliatórias entre aqueles grupos que lutam pela distribuição do poder na
sociedade (feminismo, marxismo, antiracismo e anti-imperialismo) e a abordagem
igualitária da Ecologia Profunda e sua crítica daquela que é considerada a
legitimação "que tem habitualmente sido empregada por aqueles que são os
maiores responsáveis pela dominação social e pela destruição ecológica"
(PWMWOOD, 1993a, p.228).
Ecoferninsmo em urna voz diferente
A australiana
Salleh (1993) também baseia seus argumentos no livro de Gilligan (1982) In a Different Voice (Em uma Voz Diferente)
e diz que as "vozes diferentes" das mulheres são raramente ouvidas,
mas que tais vozes em diferentes culturas apresentam modelos alternativos para
uma Ética Ambiental. A autora parte de dados preocupantes, apontando o fato de
que atualmente, apesar de representarem mais ou menos metade da população
humana, as mulheres ocupam cerca de 65% da força de trabalho e recebem menos de
10% da renda global. Salleh (1993) diz que as análises ecofeministas do
patriarcado é que tem revelado isso. Ela parte de iniciativas práticas para
provar que as mulheres, em muitos lugares, principalmente no chamado Terceiro
Mundo, têm se relacionado com a natureza com reciprocidade, ao passo que os
homens brancos, capitalistas e ocidentais se "relacionam" através do
controle.
Para provar
sua tese, Salleh (1993) cita diversos programas ambientais das Nações Unidas e
de Organizações Não-Governamentais (ONGs) que focalizam suas atenções nas
mulheres como agentes frente aos desafios da sustentabilidade, mostrando como
elas obtiveram sucesso em seus empreendimentos. Salleh (1993) cita, ainda, as
inúmeras organizações internacionais que procuram dar voz às mulheres no
enfrentamento das crises ambientais como a World Wide Women in Defense of
Enuironment — Washington D.C., que procura superar os esquemas superficiais de
desenvolvimento e dar voz àquelas que Gilligan (1982) considera portadoras de
"urna voz diferente".
Ecofeminismo e Essencialismo
O ecofeminismo
em muitas de suas vertentes defende que a mulher teria uma relação "mais
natural" com o ambiente. Isso é particularmente percebido nos enfoques
ecofeministas dados às mulheres do que Santos (2005) chama de Sul Globalizado.
Essas tendências mais naturalizantes, muitas vezes, apregoam o desenvolvimento
de uma certa espiritualidade na relação das mulheres com a natureza. As mulheres
seriam portadoras de um caráter sagrado. Santos (2005) faz uma crítica dessas
pretensões do ecofeminismo dizendo que trata-se muito mais de uma visão do
Norte Imperial sobre o Sul do que uma característica das relações das mulheres
com o ambiente no Sul Globalizado.
O estereótipo
predominante nesse tipo de abordagem é o da mulher rural que é obrigada a
caminhar longas distâncias em busca de água, lenha e outros recursos para
assegurar a manutenção da sua casa. Essa abordagem, ao gerar apenas uma imagem
essencialista das mulheres subalternizadas, torna invisível toda uma extensa
franja de mulheres que, por exemplo, vivem em ambiente urbano ou perturbaria
nos países do Terceiro Mundo" (SANTOS, 2005, p.51),
Para o autor, o ecofeminismo
romantiza as mulheres do Sul em seu papel de guardiãs originais e naturais da
natureza Essas críticas são realmente um alerta necessário. No entanto, Santos
(2005) se equivoca ao afirmar que o ecofeminismo como um todo não articula
diferenças de classe, étnicas, raciais e geográficas.
O ecofeminismo socialista igualitário dá conta perfeitamente
de tematizar as diferenças de classe. O bioregionalismo ecofeminista articula
as diferenças geográficas, Inclusive as diferenças entre o Norte e o Sul,
denunciando o eurocentrismo. Já as diferenças étnicas e raciais são trabalhadas
por Cuomo (1998) em Feminism and
Ecological Communities: an ethic of flourishing (Feminismo e Comunidades Ecológicas: uma ética do florescer). Apesar
de corretas, as críticas de Santos (2005) ainda vêem o ecofeminismo como um
movimento homogêneo, coisa que como vimos, não ocorre. Além disso, ele esquece
de citar as duas maiores expoentes do chamado ecofeminismo cultural: Karen
Warren e Val Plumwood. O termo "cultural" é obviamente um eufemismo.
Na verdade, aponta para o fato de serem críticas do caráter essencialista que
acompanha muitas das posturas do ecofeminismo. Warren (1993) defende a
narrativa como constitutiva do ecofeminismo, pois expressam atitudes que
emergem em situações particulares e Plumwood (1993, 2002) defende o
self-relacional.
Karen Warren: O poder e a promessa do ecofeminismo
O que conta
como abordagem ecofeminista depende muito do contexto particular das vidas das
mulheres. Warren (1993, p.435, ênfase da autora) diz que "uma estrutura
conceitual opressiva é aquela que explica, justifica e mantém relações de
dominação e subordinação". Ela argumenta que a estrutura conceitual
opressiva mais importante é a "lógica da dominação". Warren (1993)
diz que não existe nada particularmente errado com o pensamento hierárquico ou
com o pensamento hierárquico sobre valores. O pensamento hierárquico pode ser
muito útil para comparar dados e organizar materiais. Mas quando o pensamento
hierárquico sobre valor ocorre dentro de uma estrutura conceitual opressiva ele
se torna problemático, pois estabelece a inferioridade. Muitas vezes, a
diferença é tratada em termos de superioridade. Vejamos com funciona o
argumento de Warren (1993, p. 436): "Humanos são diferentes de plantas e
rochas porque os humanos podem (e plantas e rochas não podem) conscientemente e
radicalmente modificar as comunidades nas quais eles/elas vivem; humanos são
similares a plantas e rochas no fato de serem ambos membros de uma comunidade
ecológica". Aparentemente esse argumento não é opressor. Mas se
adicionarmos a esse argumento mais duas conclusões, a configuração muda: 1)
humanos são moralmente superiores a (pelo menos) alguns não-humanos; 2) e essa
superioridade justifica a subordinação. Assim, a lógica da dominação se conclui.
Essa lógica da dominação, diz Warren (1993), deveria estar no topo de uma
agenda ecofeminista.
Na cultura
Ocidental dominante as estruturas conceituais patriarcais têm advogado que o domínio
do mental pertence aos homens, ao passo que o domínio da natureza seria
identificado com a mulher. O argumento é dado em termos de diferença. Mas o pensamento
hierárquico sobre o valor permite que Warren (1993) extraia mais conclusões: 1)
O argumento estabelece o patriarcado. 2) A dominação sistemática das mulheres
pelos homens é justificada. Muitos (as) ecofeministas têm afirmado que as
premissas do argumento de que as mulheres podem ser identificadas com a
natureza enquanto os homens se caracterizam pelo domínio mental e abstrato é
falsa. Afinal, baseia-se em uma indevida sanção ética construída
historicamente. Estas asserções de diferença são problemáticas porque "têm
funcionado historicamente em uma estrutura conceituai patriarcal e cultural que
sanciona a dominação da mulher e da natureza" (WARREN, 1993, p.437).
Esse argumento
é denominado por muitos ecofeministas de dominação gêmea". Assim concebido,
o ecofeminismo seria necessário a qualquer forma de feminismo, pois clarifica a
lógica da dominação. A clarificação dessa lógica pode vir a construir uma noção
mais significativa de diferença onde esta funcione como um movimento de
solidariedade entre diferentes mulheres de diferentes raças, classes, idades,
orientação afetiva etc. "Ecofeministas insistem que o tipo de lógica da
dominação usada para justificar a dominação de humanos por gênero, raça ou
etnia, ou status de classe é também usada para justificar a dominação da
natureza" (WARREN, 1993, p. 438).
Tal como
Plumwood (1993a, 2002), Warren (1993) defende um self-relacional e, por isso,
defende, também, as narrativas éticas feministas na primeira pessoa, pois isso
mostra que o eu está¬em-relação sempre. Esta condição, por sua vez, pode fazer
com que emerjam narrativas éticas não-patriarcais. Cheney (1993) também defende
o uso de narrativas éticas tanto no feminismo como no ecofeminismo. Para Cheney
(1993) e Warren (1993) uma narrativa é ética quando não leva à dominação e à
conquista, e sim coloca o eu-em-relação e não em subordinação. Warren (1993, p.
441) cita o caso de um alpinista que não escala a montanha para dominá-la, mas
para estar-em-relação com as rochas. "Como alguém narra a experiência de
escalar uma montanha e como este alguém a escala é algo que importa
eticamente". O ecofeminismo é contra todas as formas de dominação:
anti-sexista, anti-racista, anti-classista etc. O feminismo teria que acolher o
feminismo ecológico, uma vez que a dominação da mulher está historicamente
conectada com a dominação da natureza. É a chamada dominação gêmea. Para Warren
(1993) um mundo mais desejável seria aquele onde a diferença não alimentasse
mais a dominação, mas sim a diversidade.
Conexões do Ecofeminismo com trabalhadores e animais
Cuomo (1998) oferece uma crítica
aos sistemas masculinistas de dominação e explora, também, ambientalismos não
feministas. Ela menciona o exemplo de como a opressão de animais, principalmente
fêmeas, reforça a opressão da mulher. Citando Gaard e Gruen (2003), Cuomo
(1998, p. 19-20) observa que:
Com o objetivo
de manter vacas leiteiras em um constante estado de lactação, elas precisam
ficar grávidas anualmente. Após seu primeiro filhote ser tornado dela no
nascimento, ela é ordenhada por máquinas duas vezes, em algumas ocasiões três
vezes ao dia por dez meses. Após o terceiro mês ela será engravidada novamente.
Ela vai dar à luz apenas seis ou oito semanas após secar o leite. Esse intenso
ciclo de gravidez e superlactação pode durar cerca de cinco anos e então a vaca
"gasta" é mandada para o abate.
Um terço das
vacas leiteiras sofrem de mastitis, uma doença que infecta as mamas. A causa
mais comum de mastitis são agentes patogênicos que resultam de sórdidas
condições de moradia, particularmente por contaminação fecal... O resultado
para a vaca é sangramento e dor aguda, particularmente durante a ordenha (que é
sempre feita pela máquina).
Vacas leiteiras
são sempre artificialmente inseminadas. De acordo com fazendeiros este método é
mais rápido, mais eficiente e mais barato que manter touros. Com o uso de
injeção de hormônios as vacas irão produzir dúzias de ovos a qualquer época.
Após a inseminação artificial, os embriões serão descarregados no útero e
transplantados para a mãe portadora através de incisões em seus flancos. O
Hormônio do Crescimento Bovino (BGH) está sendo vendido como um revolucionário
meio de aumentar a produção sem acréscimo nos custos de alimentação. As vacas
estão produzindo mais leite do que seus corpos podem e mais do que a demanda do
mercado. Com o advento da BGH, a já curta e dolorosa vida da vaca leiteira
tornou-se ainda mais curta e dolorosa.
Assim, como
podemos observar, as fazendas também são foco de atenção das ecofeministas, não
só pelo que diz respeito às condições de vida dos animais, mas também às
condições de trabalho de empregados, e nos trazem dados surpreendentes. Wright
citado em Cuomo (1998), argumenta que de 80% a 90% dos empregados das fazendas
dos Estados Unidos são latinos ou afrodescententes. A cada ano 313.000
trabalhadores adoecem devido à contaminação dos pesticidas e, geralmente,
mulheres hispânicas mostram índices muito mais altos de pesticida em seu leite
do que mulheres brancas. Além disso, Cuomo (1998) observa que os mais atingidos
são justamente os trabalhadores mais pobres e não-brancos que não têm plano de
saúde.
Ecofeminismo, justiça global e Educação Ambiental
Enquanto muitas
pessoas estão conscientes da forte injustiça na distribuição da riqueza
globalmente, poucos percebem sua magnitude — 85% da renda do mundo vai para 23%
das pessoas. Com efeito, os países industrializados (o Norte) estão drenando os
recursos do Terceiro Mundo (o Sul). Uma pessoa no Norte consome 52 vezes mais
carne, 115 vezes mais papel e 35 vezes mais energia que um Latino-americano de
acordo com Margarita Mas da Costa Rica. Com apenas 5% das pessoas do mundo, os
Estados Unidos usam um terço dos recursos não renováveis do mundo e um quarto
dos produtos do planeta; em média um cidadão dos Estados Unidos usa 300 vezes
mais energia que um cidadão do Terceiro Mundo ( GAARD; GRUEN, 2003, p. 276).
As
ecofeministas Greta Gaard e Lori Gruen (2003) observam que à primeira vista o
quadro acima descrito e muitos outros em nossa conjuntura de injustiça
interpessoal e internacional parecem não ter nada a ver com o ecofeminismo e a
Educação Ambiental. Contudo, dizem as autoras, se for possível identificar
práticas de subordinação das mulheres na conjuntura acima expressa, então,
necessariamente, trata-se de um assunto feminista. O argumento básico das
ecofeministas é de que as crianças, as mulheres e os negros são os primeiros a
serem atingidos pela devastação ambiental.
Tecendo Conexões entre Educação Ambiental e justiça global
A maioria das
socialistas feministas nos Estados Unidos tinha em sua agenda política no
início dos anos de 1970 a opressão das mulheres não só pelo patriarcado, mas
também pelo capitalismo (GAARD; GRUEN, 2003). As ecofeministas, por sua vez,
estão desenvolvendo uma abordagem "multisistema". Essa abordagem
trata das "interconexões entre as forças que operam para oprimir as
mulheres e a natureza" (op. cit., 2003). Trata-se de um cruzamento de
diversos campos de força que criam sistemas complexos de opressão. A injustiça
global seria o resultado de ideologias que se reforçam mutuamente: racismo,
sexismo, classismo, imperialismo etc. Para ilustrar melhor como operam esses
campos de forças opressoras e como o ecofeminismo responde a esse complexo
fenômeno, Gaard e Gruen (2003) citam o exemplo da criação intensiva de animais
em um ambiente altamente regulado para extrair o máximo de lucro desses
animais. Elas alertam: são diferentes teóricos com diferentes argumentos que
não são necessariamente incompatíveis entre si. Por exemplo, o feminismo
liberal argumentaria a partir da distinção Ocidental racional entre natureza e
cultura, e sendo os animais pertencentes ao domínio do natural, elas não teriam
nada a dizer.
No entanto, as
feministas liberais se consideram indivíduos autônomos que podem escolher o que
comer e isso poderia levá-las a uma luta por uma distribuição mais justa da
proteína animal no mundo, apontando para as consequências que isso teria na
vida das mulheres. As feministas socialistas focariam no caráter patriarcal e
capitalista da exploração de animais até a exaustão. "Elas poderiam
salientar, por exemplo, que nos estados Unidos, oito corporações responsáveis
pela morte de 5.3 milhões de aves anualmente, controlam 50% do mercado de
frangos". Argumentariam, ainda, que 95% dos trabalhadores de aviários são
mulheres negras.
A maior parte
dos teóricos ambientais não se preocupam muito com o fato de comer carne. São
poucos em Ética Ambiental que defendem o vegetarianismo como solução para a
crise ecológica, entretanto, uma variedade enorme de teóricos estão preocupados
com os animais industrializados, entre eles vários biocentristas e holistas. Já
uma análise com um enfoque vindo de um país do Sul poderia situar essa
instituição — a fazenda-fábrica — no marco daquelas que contribuem para o
superconsumo. Ainda na esteira de uma análise do Sul ou do chamado Terceiro
Mundo poderia se estabelecer conexões com o Agrobussines, pesticidas e
monoculturas em seus países. A perspectiva crítica do Animal liberation também
pode ser útil para a análise ecofeminista "multisistemas". Para esses
filósofos a exploração cruel dos animais é imoral. A falha em reconhecer essa
imoralidade é denominada por Singer (1995) de especismo, ou seja, controle, exploração
e preconceito de uma espécie — humana — sobre outra animal. Assim, na interseção
dos diversos campos de força que analisam o fenômeno da industrialização dos
animais, as ecofeministas expõem como a lógica da dominação sustenta essa
instituição (fazenda-fábrica) e como isso afeta os animais, os trabalhadores e
a natureza.
Como vimos, o
ecofeminismo quer um mundo melhor. Mas como vai ser esse mundo depende das
diversas vozes e experiências que dele participam. O ecofeminismo é inclusivo,
flexível e reflexivo, seu enfoque é o da comunalidade de pontos de vista,
respeitando as diferenças. É importante construir coalizões para lutar contra
as mais diversas formas de opressão. "Nada menos que o futuro da terra e
de todos seus habitantes pode depender de como efetivamente nós podemos
trabalhar juntos para realizar a justiça global e a saúde planetária"
(GAARD; GRUEN, 2003, p. 287).
Referências
CHENEY, Jim. Postmodern Environment Ethics:
Ethics as Bioregional Narrative. In: OELSCHLAEGER, Max (Ed.). Postmodern Environmental Ethics.
Albany: Suny Press, 1993.
CUOMO, Chris J. Feminism and Ecological Communities: an ethic of flourishing. New
York: Routledge, 1998.
FOX, Warwick. The Deep Ecology-Ecofeminism
Debate and Its Parallels. In: ZIMMERMAN, Michael E. et alli (Eds.). Environmental Philosophy: From Animal
Rights to Radical Ecology. New Jersey: Prentice Hall, 1993.
GAARD, Greta; GRUEN, Lori. Ecofeminism:Toward
Global Justice and Planetary Health. In: LIGHT, Andrew; ROLSTON Ill, Holmes
(Eds.). Environmental Ethics: an
anthology. Malden: Blackwell Publishers, 2003.
GILLIGAN, Carol. In a Different Voice. Cambridge: Harvard University Press, 1982.
GRUN, Mauro. O conceito de
holismo em ética ambiental e educação ambiental. In:_SATO, Michele; CARVALHO,
Isabel C.M. (Orgs.). Educação Ambiental:
pesquisa e desafios. Porto Alegre: ARTMED, 2005.
HARDING, Sandra (Ed.). The Feminism Standpoint Theory Reader. New York: Routledge, 2004.
MERCHANT, Carolyn. The Death of Nature: Women, Ecology and the Scientific Revolution.
New York: Harper Collins, 1990.
____ The Death of Nature. In: ZIMMERMAN,
Michael E. et alli (Eds.).
Environmental
Philosophy: From
Animal Rights to Radical Ecology. New Jersey: Prentice Hall, 1993.
NAESS, Arne. Ecology, community and lifestyle. New York: Cambridge University
Press, 1995.
PLUMWOOD, Val. Nature, Self, and Gender:
Feminism, Environmental Philosophy, and the Critique of Rationalism. In:
ZIMMERMAN, Michael E. et alli (Eds.). Environmental Philosophy: From Animal
Rights to Radical Ecology. New Jersey: Prentice Hall, 1993.
_____ Feminism
and the Mastery of Nature. New York: Routledge, 1993a.
_____ Environmental
Culture: the ecological crisis of reason. New York: Routledge, 2002.
REAGAN, Tom. The Case for Animal Rights. Berkley: University of California
Press, 2004.
RUETHER, Rosemary Radford. New Woman New Earth. Minneapólis: Seabury Press, 1975.
SALLEH, Mel. Working with Nature: Reciprocity
or Control. In: ZIMMERMAN, Michael E. et al. (Eds.). Environmental Philosophy: From Animal Rights to Radical Ecology.
New Jersey: Prentice Hall, 1993.
SANTOS, Boaventura de Sousa
(Org.). Semear Outras Soluções: os
caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
SINGER, Peter. Animal Liberation.
London: Pimlico, 1995.
TAYLOR, Paul. Respect of Nature. Princeton: Princeton University Press,
1986.
WARREN, Karen J. The Power and the Promise of
Ecological Feminism. In: ZIMMERMAN, Michael E. et alli (Eds.). Environmental Philosophy: From Animal
Rights to Radical Ecology. New Jersey: Prentice Hall, 1993.